Cristiane Mendonça

Casas antigas não falam, mas se lembram

E se viu sozinha naquele cômodo ancestral de portas eternamente abertas. Por ali passaram avós, tios, primos e amigos, cujas palavras – um dia proferidas – caíram sobre a terra e alimentaram as plantas da horta. Talvez, por isso todas elas estavam tão verdes e viçosas. Haviam ouvido por décadas as falas e as risadas daquela família peculiar. Se alimentaram das alegrias, secaram com os medos e refloresceram com a fé dos que pisavam aquele chão por puro afeto.

Enquanto a mangueira floria e dava frutos, indiferente aos ventos e tempestades, na mesa grande e retangular de cedro, cercada por oito cadeiras, dividiram o pão e a angústia, a raiva e o abraço, o adeus e a chegada em um constante ir e vir da vida.

Assim como abriram e fecharam milhares de vezes a porta da sala – cujos arabescos enferrujados foram repintados conforme o espírito da casa – para que conhecidos fossem embora para nunca mais voltarem e estranhos entrassem para ficarem por décadas.

E conforme tudo mudava o tempo todo – a cor da tinta pintada na parede, a pele da menina ficando moça, os cabelos fugindo da cabeça, as barrigas das mães de primeira viagem – as iniciais de A.J.L desenhadas na pedra cravada no chão, que dividia a sala de visitas do alpendre, permaneciam intactas como que zombando da vulnerabilidade humana ao tempo. A escrita pisada e repisada, gritava sem jamais ser ouvida, que todos ali passariam, menos ela!

O céu de incontáveis estrelas servia de véu fino e transparente para a platibanda, enquanto a madrugada parecia sussurrar pela cidade que nas camas dos quatro quartos repousavam serenos, os vivos e os mortos, em cega harmonia. E assim quando raiasse o novo dia, caminhos seriam seguidos por diferentes ruas, mas terminariam no mesmo destino: o trabalho como meio de sobrevivência, a religião como bálsamo para as durezas da vida e as refeições como recompensas divinas.

Cupins comeriam o banco de madeira, a chuva reduziria a pó os canos de ferro, a ventania levantaria telhas esculpidas nas coxas e as crianças crescidas se casariam para tornarem-se 12, 28 e 117, até que um dia, inevitavelmente, não fossem mais nem uma.

Mas, aquém das casualidades, as paredes construídas com tijolos duplos, as janelas de madeira conservadas e as iniciais A.J.L permaneceriam um pouco mais que todos eles e guardariam em suas estruturas histórias mudas que ninguém mais contaria: a moça que abandonada pelo noivo, em pleno período da Segunda Guerra, se matou; o gato preto chamado Trovão; a banheira de ferro fundido; os potes de doce no armário de madeira; a cristaleira com seus mimos intocáveis; a máquina de costura movida a pedal e a bolsa de couro preta, que era guardada na gaveta entre lençóis alvejados, tornaram-se tatuagens invisíveis daquela velha senhora cujos ossos eram feitos de tijolos e a pele composta de barro.

***

Photo by Nikolay Draganov from Pexels

Cristiane Mendonça

Cris Mendonça é uma jornalista mineira que escreve há 14 anos na internet. Seus textos falam sobre afeto, comportamento e Literatura de uma forma gostosa, como quem ganha abraço de vó! Cris é também autora do livro de crônicas "Mineiros não dizem eu te amo".

Share
Published by
Cristiane Mendonça

Recent Posts

Norte-americano viraliza ao descrever seu primeiro beijo com brasileira: “Eu fiquei chocado”

O influencer norte-americano Joshua Canup tem causado alvoroço nas redes sociais com um relato inusitado…

7 horas ago

Anitta é confirmada para participar do show de Madonna em Copacabana

"Anitta irá participar do aguardado show de Madonna na Praia de Copacabana, no Rio de…

7 horas ago

Escola não vai expulsar autoras de ofensas racistas contra filha de Samara Felippo: “Não acho que a gente errou”

A decisão da escola Vera Cruz, em São Paulo, de suspender, em vez de expulsar,…

2 dias ago

Priscila Fantin, a eterna Serena de ‘Alma Gêmea’, revela batalha contra depressão: “Medo do mundo”

A trajetória de Priscila Fantin, conhecida pelo público como a doce Serena da novela "Alma…

2 dias ago

Roteirista de Os Simpsons revela como eles são capazes de prever eventos do futuro

Ao longo das décadas, "Os Simpsons" conquistaram fama não apenas por sua comédia afiada, mas…

3 dias ago

Jovem do Maranhão se torna a primeira promotora quilombola do Brasil: “É por meus ancestrais”

Na luta pela igualdade de oportunidades e representatividade, Karoline Bezerra Maia alcança um marco histórico…

3 dias ago