Casas antigas não falam, mas se lembram

E se viu sozinha naquele cômodo ancestral de portas eternamente abertas. Por ali passaram avós, tios, primos e amigos, cujas palavras – um dia proferidas – caíram sobre a terra e alimentaram as plantas da horta. Talvez, por isso todas elas estavam tão verdes e viçosas. Haviam ouvido por décadas as falas e as risadas daquela família peculiar. Se alimentaram das alegrias, secaram com os medos e refloresceram com a fé dos que pisavam aquele chão por puro afeto.

Enquanto a mangueira floria e dava frutos, indiferente aos ventos e tempestades, na mesa grande e retangular de cedro, cercada por oito cadeiras, dividiram o pão e a angústia, a raiva e o abraço, o adeus e a chegada em um constante ir e vir da vida.

Assim como abriram e fecharam milhares de vezes a porta da sala – cujos arabescos enferrujados foram repintados conforme o espírito da casa – para que conhecidos fossem embora para nunca mais voltarem e estranhos entrassem para ficarem por décadas.

E conforme tudo mudava o tempo todo – a cor da tinta pintada na parede, a pele da menina ficando moça, os cabelos fugindo da cabeça, as barrigas das mães de primeira viagem – as iniciais de A.J.L desenhadas na pedra cravada no chão, que dividia a sala de visitas do alpendre, permaneciam intactas como que zombando da vulnerabilidade humana ao tempo. A escrita pisada e repisada, gritava sem jamais ser ouvida, que todos ali passariam, menos ela!

O céu de incontáveis estrelas servia de véu fino e transparente para a platibanda, enquanto a madrugada parecia sussurrar pela cidade que nas camas dos quatro quartos repousavam serenos, os vivos e os mortos, em cega harmonia. E assim quando raiasse o novo dia, caminhos seriam seguidos por diferentes ruas, mas terminariam no mesmo destino: o trabalho como meio de sobrevivência, a religião como bálsamo para as durezas da vida e as refeições como recompensas divinas.

Cupins comeriam o banco de madeira, a chuva reduziria a pó os canos de ferro, a ventania levantaria telhas esculpidas nas coxas e as crianças crescidas se casariam para tornarem-se 12, 28 e 117, até que um dia, inevitavelmente, não fossem mais nem uma.

Mas, aquém das casualidades, as paredes construídas com tijolos duplos, as janelas de madeira conservadas e as iniciais A.J.L permaneceriam um pouco mais que todos eles e guardariam em suas estruturas histórias mudas que ninguém mais contaria: a moça que abandonada pelo noivo, em pleno período da Segunda Guerra, se matou; o gato preto chamado Trovão; a banheira de ferro fundido; os potes de doce no armário de madeira; a cristaleira com seus mimos intocáveis; a máquina de costura movida a pedal e a bolsa de couro preta, que era guardada na gaveta entre lençóis alvejados, tornaram-se tatuagens invisíveis daquela velha senhora cujos ossos eram feitos de tijolos e a pele composta de barro.

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Photo by Nikolay Draganov from Pexels



LIVRO NOVO



Cris Mendonça é uma jornalista mineira que escreve há 14 anos na internet. Seus textos falam sobre afeto, comportamento e Literatura de uma forma gostosa, como quem ganha abraço de vó! Cris é também autora do livro de crônicas "Mineiros não dizem eu te amo".

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