As crianças feridas que nos habitam

Recentemente assisti ao longa “Ninguém sabe que eu estou aqui” na Netflix, e o filme me trouxe várias reflexões. Confesso que tenho uma queda pelos anti-heróis, por pessoas com a vida meio fora dos eixos, emocionalmente confusos e melancólicos demais. Acho que esse tipo de personagem retrata melhor a vida real, que nem sempre é bonitinha, limpinha, com trilha sonora da Disney e final feliz. Gosto de enredos mais dramáticos, com protagonistas que carregam cicatrizes e dores profundas, geralmente com um passado difícil. Memo, o protagonista de “ninguém sabe que estou aqui” é um desses personagens.

Interpretado pelo talentoso ator Jorge Garcia (conhecido mundialmente pelo personagem Hugo “Hurley” Reyes, da série “Lost”), Memo Garrido é um homem que vive isolado do resto do mundo, numa rotina de solidão e silêncio, carregada de dor e angústias de um passado traumático. Um homem que carrega – no físico e no espírito – as marcas da criança ferida que foi – e que ainda o habita.

Todos nós carregamos nossas crianças feridas. Alguns mais, outros menos, mas – invariavelmente – somos habitados por esses pequenos seres que fomos e que precisam ser curados.

Algumas situações despertam nosso “pior” lado. Alguns acontecimentos funcionam como chaves capazes de abrir nossos porões há muito tempo trancados. Algumas circunstâncias nos pegam pela mão e nos obrigam a encarar nossos fantasmas. Alguns gatilhos acordam nossas crianças feridas.

De repente você começa a se relacionar com alguém e – você, gata descolada, muito segura – volta a se comportar como uma menininha indefesa, dependente e muito carente. Você se pergunta o que aquela pessoa tem que a deixa tão vulnerável, e simplesmente não entende. Gostar muito de alguém pode ser assustador. Pois, de alguma forma que é difícil compreender, os afetos nos conduzem a uma jornada em que revivemos a criança que fomos, e tudo o que ela – do jeito que pôde – entendeu da vida e assimilou como verdade.

Porém,  não precisa ser ruim se você reconhecer que pode ser a chance de você se curar. De acolher sua criança interior e reformular a forma como ela experimentou a vida e aprendeu a lidar com seus assombros: abandono, rejeição, negligência, falta de confiança, medo de críticas, resistência à mudanças. De voltar ao quarto da infância e acender a luz. De revisitar os porões e abrir as janelas. De pegar pela mão a criança que chora sozinha no meio da rua escura e levá-la a um lugar seguro.

Perto de algumas pessoas voltamos a ficar vulneráveis. Perto de algumas pessoas voltamos a nos comportar “primitivamente”, feito animais ameaçados. Algumas situações funcionam como gatilhos, capazes de trazer à tona aquilo que levamos anos tentando superar. É tentador autossabotar relacionamentos que despertam nosso lado menos bonito. Porém, pode ser a oportunidade de reconhecermos nossas feridas e, com autoconhecimento, curá-las.

Alguns encontros nos deixam à flor da pele, despertam gatilhos de dor, exigem respostas que não temos. Podemos fugir desses encontros; continuar agindo como pessoas desequilibradas ou; ao contrário de todas as previsões, reconhecer que há um trauma encoberto e ir atrás da cura.

“Você está segura agora. Nós estamos seguras agora” – repito, quase diariamente, para a criança que me habita. Já não há mais abandono, desamparo, negligência; pois cresci, e sei cuidar de nós duas. Já não há mais rejeição, medo de não ser aceita, medo de errar; pois vencemos e estamos bem, em paz. Já não é tão pesado, nem difícil, nem solitário; pois estamos juntas. E isso é tudo.

Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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