Quando a sua “brincadeirinha” constrange o outro, não é só brincadeira. É desrespeito

Demorei muito para aprender a impor limites. Sendo absolutamente sincera, ainda não aprendi. Mas estou no processo. Um dia de cada vez, sendo desafiada a cada instante: caindo e levantando, errando e acertando, falhando e aprendendo com meus erros.

Ninguém nasce sabendo. Frase clichê, mas absolutamente verdadeira. Além de não nascer sabendo, aprendi de forma distorcida. Quase não havia privacidade, esbanjava-se falatório sobre a vida de todo mundo, era normal se intrometer na intimidade do outro. Ser alguém que não nega um favor – mesmo que isso significasse abdicar de si mesmo – era valorizado, e sofrer abusos físicos ou psicológicos era negligenciado.

Quando você cresce sem aprender a impor limites – porque seus cuidadores, eles mesmos, não sabiam impor limites também – você vai permitindo abusos em sua vida como se fossem coisas normais, autorizadas, legítimas.

Cresci numa família em que os limites eram desrespeitados, e por isso nunca soube impor limites nas minhas relações familiares, de amizade, amorosas. Quando entrei na faculdade, me esforcei para ser uma menina “legal”. Queria ser aceita, amada, admirada. Na minha cidade natal tinha sofrido bullying, e jurei que isso jamais se repetiria. Porém, na cidade nova em que ninguém me conhecia, construí uma personagem sempre disposta a fazer os outros rirem, criando disfarces para minhas inadequações, dores e dissabores.

Eu praticava autobullying, antecipando aquilo que acreditava que – invariavelmente – aconteceria comigo. Era divertida, engraçada, gente boa… mas não me protegia. Era uma personagem que fazia rir porque trazia à tona aquilo que as pessoas levavam anos tentando esconder. Acabava com minha reputação satirizando traumas, fraquezas e dificuldades. Com aparente leveza e bom humor, me humilhava para redimir todos ao meu redor.

Porém, há um preço alto a pagar quando você tenta ser legal e acredita que, para isso, não há limites. Quando você deixa de se proteger para priorizar o bem estar do outro. Quando você abre mão de si mesmo para favorecer o outro. Quando você deixa de se cuidar para atender às necessidades do outro. Quando você é desrespeitado e ri da situação para não constranger o outro.

Faço terapia há anos, e aos poucos tenho aprendido a me proteger. Porém, de vez em quando surgem situações inéditas, colocando em xeque-mate aquilo que parecia assimilado e aprendido.

Quantas vezes não ri da “brincadeira” de mau gosto de alguém para não criar climão, mas no fundo me senti constrangida? Quantas vezes não fingi que gostei da piada, quando no fundo me senti desrespeitada?

Fica a dúvida: será que o outro é sem noção ou eu que dei liberdade demais? Tenho me perguntado isso pois, como eu disse, sempre quis ser uma pessoa “legal”. Alguém que ri de si mesma, que não se ofende com qualquer besteira, que é divertida e amiga de todos. Porém, algumas pessoas confundem amizade com excesso de liberdade. E há um limite tênue entre ser legal e ser permissiva. Uma linha sutil entre ser amigável e autorizar abusos.

Aos poucos tenho aprendido que não preciso abrir mão dos meus limites em prol de ser uma pessoa divertida e legal. Não preciso autorizar constrangimento e invasões de minha privacidade em favor de ser aceita e amada. Não preciso descuidar de mim, autorizando interferências não solicitadas na minha vida em nome da “política da boa vizinhança”.

Até que ponto é saudável disfarçarmos nossa inadequação, timidez e medo do abandono com frases ousadas e bem humoradas, como se a vida fosse uma sitcom? Até que ponto é saudável nos auto-boicotarmos, auto-sacanearmos, fazendo caricaturas de nós mesmos em prol de sermos pessoas divertidas e legais? Qual o preço de rirmos de nós mesmos ao ponto das pessoas perderem o respeito por nós?

Não defendo a insegurança, o medo de que enxerguem minhas fraquezas, a incapacidade de confiar e me tornar íntima de alguém. Porém, é preciso saber em quem confiar. É preciso selecionar para quem dar liberdade. É preciso escolher quem merece estar conectado(a) intimamente a mim.

A carência nos torna pouco seletivos. Ansiamos tanto pelo afeto de alguém que nos tornamos permissivos. Desejamos tanto sermos vistos e admirados que não nos protegemos. Almejamos tanto ter um milhão de amigos que não percebemos as armadilhas. Pretendemos tanto a popularidade e o amor que abrimos as portas de nossa intimidade para lobos em peles de cordeiro. Queremos tanto ser aceitos e criar conexões que permitimos abusos.

Com o tempo a gente aprende: nem todos vão gostar da gente, e está tudo bem. Não precisamos fazer esforços sobre humanos para sermos aceitos e amados, passando por cima de nossa dignidade, permitindo desrespeitos e abusos, rindo daquilo que nos constrange e fazendo cara de paisagem para aquilo que nos desagrada.



LIVRO NOVO



Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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