Amores que não cicatrizam

Gosto de pensar que carregamos um mundo invisível dentro de nós. Muitas vezes, nem mesmo nós temos noção desse jardim secreto, mas ele está lá, guardando pequenos segredos e algumas memórias. Então de repente, num dia qualquer, uma chave escancara nosso mundo invisível e, sem defesas, somos desafiados a lidar com aquilo que protegíamos tão bem.

Num dos meus textos mais lidos: “O que a memória ama fica eterno”, eu conto que quando era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao ler um livro, assistir a um filme ou ouvir uma música. O que eu não entendia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis, e sim pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender.

Uma música, um livro, um filme… um tropeção sem importância, um cheiro conhecido, um sabor marcante, uma paixão. São pequenos ou grandes gatilhos que podem nos reconectar com nossa memória, com a porção de nós mesmos que ainda tem algo a nos dizer, com a parte de nós mesmos que precisa ser curada, com aquilo que não pode mais ser adiado.

Hoje, mais do que isso, acredito que os relacionamentos que temos ao longo da vida são os maiores gatilhos para entrarmos em contato com o mundo invisível que nos habita. E isso fica muito evidente quando um relacionamento acaba e não conseguimos nos desconectar daquela história. Muitas vezes, não é do relacionamento que não conseguimos nos despedir, e sim da conexão que esse relacionamento fez com nosso mundo invisível, com nossa cadeia de memórias – tão complexa, insondável e mágica.

Alguns amores não cicatrizam. A relação durou pouco, não teve tanta importância ou profundidade, a pessoa com quem você se relacionou seguiu a vida dela… mas você não consegue se desapegar, não consegue deixar pra trás, não consegue se desconectar. Você olha para os fatos, para todas as situações vividas, e simplesmente não compreende o porquê daquela história – justamente aquela história – significar tanto.

Martha Medeiros tem uma crônica que gosto muito que diz assim: “Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.”

É que algumas paixões fazem a conexão com algumas memórias importantes que tivemos ao longo da vida. Alguns relacionamentos, inclusive os platônicos – talvez principalmente os platônicos – fazem a conexão com nosso mundo invisível e, muitas vezes, desfazer esse vínculo é difícil porque representa desfazer o vínculo com toda a cadeia de memórias importantes que foram conectadas naquela relação.

Paixões são projeções. E aquela familiaridade que sentimos perto de algumas pessoas, aquela paixão à primeira vista, ou o bem-querer imediato (e difícil de se desfazer quando a relação acaba) podem não passar de peças que nosso cérebro nos prega.

Mas não é de graça. Provavelmente, aquela pessoa tão especial foi capaz de abrir nosso baú secreto, ou de nos pegar pela mão e nos levar para passear em nosso jardim insondável. E agora que chegamos lá, não conseguimos dizer adeus e simplesmente ignorar que tivemos nossos compartimentos de afetividade escancarados. Já não é mais possível retornar, e novamente trancar nosso acervo de memórias no sótão.

Talvez devêssemos olhar mais para nós mesmos e para nossa história. Entender e lidar com nossas memórias mais significativas, dolorosas ou difíceis de encarar para então ressignificar o sofrimento pela perda de um amor. Nem sempre choramos pelo fim da relação, e sim por partes de nós mesmos que foram acessadas e agora precisam ser curadas.

Alguns amores nos transpassam, e revelam algo de nós que nem mesmo nós sabíamos. Depois de experimentarmos esse tipo de amor, nunca mais voltamos a ser os mesmos. Não há como voltar. Nem se arrepender. Só há que se agradecer, e tocar a vida pra frente, entendendo que mesmo que tenham durado pouco – ou menos do que a gente gostaria- foram necessários para gente crescer.

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Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

3 COMENTÁRIOS

  1. cheguei aqui pelos musicais da Brodaway e de repente me aparece esse texto, que simplesmente resume o que está acontecendo comigo desde um pouco antes da quarentena. exatamente como o texto diz, um relacionamento rápido, sem importância ou profundidade que não consigo esquecer. Mas acho que esse texto mata a charada. uma amiga tinha me dado uma ideia parecida. mas acho que você foi no ponto, sobre as memórias, desejos adormecidos, etc. obrigada.

  2. Gostei dos argumentos. Tem muitas possibilidades de se pensar sobre essa memória amorosa e o pre consciente trabalhado pode nos ajudar a elaborar melhot,

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