Amor de pai

Na noite de um ano que não me lembro, meu pai bateu na nossa janela e voltou para ficar de vez. Trazia na mala brinquedos, seu sorriso de dever cumprido e um coração cheio de esperança. Voltava do Iraque – país onde trabalhou por dois anos entre idas e vindas – para  começar no Brasil, a sua vida de fato.

Filho de uma casa com 12 irmãos onde tudo era dividido e a palavra “não” era servida todos os dias com um pouco de arroz com feijão, meu pai aprendeu desde cedo o valor do trabalho. No Oriente Médio, entre tempestades de areia e saudades, juntou o suficiente para investir no próprio negócio no Brasil, garantindo assim, o sustento da sua família que, com seus vinte e poucos anos, ele já tinha.

Quando voltou ainda eram anos difíceis, mas tudo exalava o perfume dos bons começos: meus irmãos e eu ainda pequeninos, minha mãe e ele tão jovens, o portão de ferro que rangia ao nosso passar e as verduras, do seu novo estabelecimento, tão frescas quanto a nossa vida. As bancas de madeira pintadas de azul, as cebolas e as batatas amarelas e a balança Filizola vermelha  – alugada por falta de condições para comprá-la – decoravam o mercado do meu pai, que a exemplo do meu avó, tinha o comércio nas veias.

Ele que, até os quatro anos da minha vida era uma figura efêmera, indo e vindo em nossa casa, agora trabalhava no cômodo ao lado e nos acompanhava 24 horas. Diante dos olhos  do homem que vivia entre a doçura da abóbora e a acidez do limão, crescíamos nem sempre sabendo combinar os diferentes sabores. Éramos verdes como as couves colhidas em um pequeno quintal.

Hoje compreendo, porém, que graças à miscelânea de cores, gentes e sabores daquele comércio, aprendi a conviver com as nuances. Descobri, através dos gestos, o amor que meu pai sempre me ofereceu: a comida na mesa, a disciplina na palavra e o afeto no sorriso cerrado. Um amor que nem sempre parecia doce, mas me fez resiliente. Entendi cedo que na velha Filizola, meu pai pesava não somente as batatas, mas também o nosso amor, sabendo exatamente o valor que cada coisa tinha.

Os sentimentos nem sempre estavam expostos nas bancas de madeira porque pessoas, assim como algumas frutas, não amadurecem à força: carecem da estação certa para estarem prontas para a colheita. Os defensivos que aceleram o metabolismo, prejudicam o sabor… E a natureza sábia nos ensina que é prudente esperar a hora certa da colheita.

O tempo passou. Meu pai e eu, não somos mais verdes e ácidos, tampouco maduros e passados, mas estamos plenos do que somos nós dois: sementes da nossa ancestralidade, porém sempre capazes de novos frutos.

***

Foto: Imagem do filme “Tal pai, tal filha” – Divulgação Netflix


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Cris Mendonça é uma jornalista mineira que escreve há 14 anos na internet. Seus textos falam sobre afeto, comportamento e Literatura de uma forma gostosa, como quem ganha abraço de vó! Cris é também autora do livro de crônicas "Mineiros não dizem eu te amo".

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