“A nossa virada”

Há muitos anos minha mãe comprou um apartamento na praia. Era meu último semestre na faculdade de arquitetura, mas ela arquitetou tudo sozinha. Reformou, projetou o gesso e as luzinhas – “como você gosta, filha” – e escolheu um sofá azul – “porque é azul a cor do mar”. Decorou as paredes com pinturas assinadas por suas amigas e comprou taças para os brindes de ano novo.

Quando finalmente apresentamos nosso projeto de final de curso, Fernanda e eu fomos descansar na praia. Para receber-nos, mesa posta com café colonial, flores e todo o aconchego do refúgio azul. Ali vivemos dias memoráveis de descanso e paz. Minha mãe viveu tempos memoráveis de boa saúde e satisfação no lugar que ela escolheu pra ser feliz.

Dois anos depois minha mãe teve um AVC. Vieram tempos memoráveis no sentido inverso. A vida dela mudou para sempre (a minha também). O apartamento na praia tornou-se guardião de memórias. Dentre elas, a tradição do ano novo com a família reunida, as taças ganhando vida a cada brinde.

As dificuldades provenientes do AVC se intensificaram com a soma dos anos. Depois da última internação providenciei uma cadeira de rodas. Ela aceita; está cada vez mais dependente das rodas da cadeira, do apoio dos filhos, das presenças conhecidas. Os impasses provenientes de sua personalidade forte também se acentuaram. Está cada vez mais exigente e impaciente – e visivelmente mais frágil.

Este ano, logo que cada filho apresentou seus planos para a virada do ano, ela reafirmou sua tradição de passar a data na praia. Eu escolheria uma ‘road trip’ rumo ao fim do mundo com meu amor, mas eu não tenho um amor. Eu escolheria levar minha filhinha visitar a ‘abuela’ no país vizinho, mas eu não tenho uma filhinha. Eu escolheria passear tranquilamente por minha cidade semideserta ou encontrar as amigas numa praia do Nordeste, livre de preocupações – neste caso, o que não tenho é dinheiro. Não foi escolha minha, mas era importante pra ela. Eu escolhi fazê-la feliz.

Nos anos anteriores ela não aproveitou a “tradição” como deveria, ou como gostaríamos. Chegou até mesmo a virar o ano embaixo de seu edredom de inverno, alheia ao calor e aos fogos de artifício. Por conta disso, parecia imprudente enfrentar trânsito e multidão para cumprir um ritual dispensável. Porém, eu já tinha escolhido ir à praia com minha mãe. Juntei toda boa vontade, uma champanhe e duas amigas queridas, e lá fomos nós.

Vivemos uma semana intensa. Ela ganhou ceia de ano novo e desceu para ver os fogos – disse que foram os mais bonitos que já viu. Ela comeu algodão doce na virada do ano e casquinha de siri todos os dias. Ela reclamou de dor muitas vezes e sorriu de satisfação outras tantas. Ela dormiu o quanto quis e passeou muito mais. Ela vestiu o maiô cor-de-rosa. Ela caminhou na areia, de açucareiro, filha de um lado, amiga de outro. Sentamos juntas à beira mar, a mão dela entrelaçada à minha. As ondas resolveram nos cumprimentar. Invadiram nossas pernas e nossas almas. Minha mãe sorriu, suspirou e disse “que bonito isso aqui”. Este instante mágico durou dez minutos e fez tudo valer a pena.

Eu não tive uma semana de férias, tive sete dias de oportunidades. Oportunidade de cuidar, de amar sem medida, de ouvir “eu te adoro” ao acordar e ao ir dormir – e até mesmo de madrugada. Aprendi a valorizar esta expressão que antes considerava banal. Eu respondo “eu te amo”, mas ela me explicou que adorar é mais que amar. Eu a adoro empurrando a cadeira de rodas, organizando os remédios, passando protetor solar infantil, servindo seu “café com pão molhado”. Ela retribui sorrindo, cumprindo nosso trato de colecionar momentos memoráveis. Ela colaborou comigo, fazendo meus dias leves, apesar de cansativos. Eu colaborei com ela, fazendo seus dias leves, apesar de restritos. Leveza, esta é a palavra. A palavra e a postura que eu escolhi.

Minha mãe adora contar histórias do tempo bom que viveu nesta praia. Sinto que este apartamento guarda as lembranças de seus últimos tempos de autonomia e por isso ela gosta de estar aqui. Resolvi que esta semana nos traria novas histórias para contar. Histórias felizes entre minha mãe e eu, entre nós e o mar. Momentos únicos e doces, talvez difíceis, certamente marcantes. Dias bons que têm por testemunha duas amigas amorosas e o mar de Balneário Camboriú. O lugar que minha mãe escolheu para ser feliz.

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Mônica Moro Harger • 04/01/2019
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Arquiteta, tia, madrinha de sete. Apaixonada por gente e palavras, desde cedo fez dos “escritos” uma forma de homenagem: à vida, à família, aos amigos. No início de 2018 reuniu alguns textos no facebook e ganhou leitores assíduos, mais amigos e novos sonhos. Desde então, divide os projetos com as palavras - além do cinema com os afilhados (um ou dois de cada vez) e do café com a “menina da sala ao lado”. Vive em Curitiba, onde coleciona memórias, ímãs de viagem e recados na geladeira.

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