Tudo que afasta você de si mesmo é uma pequena morte

A gente passa a vida atrás de conquistar pessoas, coisas, situações, lugares… por meio dos quais acreditamos piamente que alcançaremos “um tal de lugar melhor”. Sim, dito desta forma soa até fúnebre. Trata-se de um eufemismo muito usual entre nós. Na hora que temos de lidar com a morte – esse tabu incompreensível – costumamos dizer que “Fulana ou fulano foram para um lugar melhor!”. E dizemos isso de forma automática e irrefletida, porque no momento de uma perda dessas não há mesmo muito o que se possa dizer.

Somos um bando de papagaios treinados nessa arte de repetir, repetir e repetir frases prontas, planos prontos, ideias prontas, muitas vezes com origens duvidosas ou desconhecidas. Afinal, vai saber quem foi o primeiro ser humano a dizer que “Fulano ou fulana foi para um lugar melhor”.

E que lugar melhor seria esse? Há garantias? Alguém pode mesmo jurar, de pés juntos, que ao partirmos desta vamos MESMO para uma melhor? Ora, ora… Salvo os espiritualistas, essa gente iluminada que pode desfrutar da vida encarnada mais feliz, posto que tem como certo que há de verdade um outro lado, todos nós, os outros mortais, só temos mesmo um mar de incertezas pela frente.

Há religiões, inclusive, que afirmam que vamos todos para uma espécie de sala de espera, onde devemos ficar até o dia do juízo final, para só então, sermos julgados e ouvirmos ser proferida nossa sentença, que tanto pode ser o céu quanto o outro lugar, aquele que fica mais embaixo, onde – dizem – faz um calor dos infernos!

Morrer vamos todos! Essa talvez seja a única certeza entre nós; e tanto faz se a gente crê em anjos que tocam arpas, no umbral, no purgatório, ou num diabo calmo e paciente que vive pleno a esperar por aqueles que não andaram na linha. Mas, afinal de contas, o que é de fato considerado pecado para condenar uma criatura de Deus a ficar eternamente no lado oposto do paraíso? Alguns palpites até que dá para arriscar, não é mesmo?

Matou? Vai derreter. Roubou merenda de criança? Idem. Desviou verba de aposentadoria de velhinhos? Ahhhhh… meu amigo, melhor ir fechando uns pacotes turísticos pra Teresina, pra ir se acostumando.

Mas… e delitos menores? Tipo colar na prova de química orgânica? Ou dizer pra nutricionista que não comeu nenhum carboidrato e que a balança dela certamente está com defeito? E aquela dor de barriga imaginária que rendeu uma folga em plena quarta-feira? Delitos menores determinam nossa ida sem volta para Teresina? Digo… para lá, pra aquele lugar que você sabe onde?

Eu que passei a minha vida sem entender por que diabos eu não nasci na Islândia, posto que de-tes-to calor, amo dias nublados e amo ainda mais uma boa garoa… morro de medo desse povo do juízo final estar certo.

É gente, e nesses tempos bicudos de polarização, todo mundo jura que tem absoluta certeza do que diz, quando em verdade nunca se esteve tão perdido. Pior coisa que pode acontecer para uma civilização é viver arrotando certezas. As certezas anulam a pesquisa, embrutecem o pensamento e enferrujam a capacidade de refletir feito ferrugem de maresia num gira-gira de parquinho à beira-mar.

O que pode nos salvar, então, de morrermos em vida? De sermos soterrados por essas certezas da esquerda, da direita, do centro, de cima e de baixo? O que pode nos proteger do peso de não duvidar?

Nada! A não ser a nossa resistência ao comodismo de ficarmos repetindo frases, ideias ou planos que não são nossos, que não brotaram no nosso peito e que, portanto, se forem plantadas em nossa alma, cuja essência não saberá conter esse broto alienígena, haverá de matá-lo antes que germine.

Tudo que afasta você de si mesmo é uma pequena morte. É uma pequena morte esquecer as canções da infância, deixar de se lambuzar de manga ou caqui, parar de rir à toa, abandonar os sonhos que nos fizeram chegar vivos até aqui.

A vida é esse bichinho inquieto e barulhento que mora aí no seu peito. Ele precisa ser amado, acolhido, bem-quisto, bem-vindo… para que a sua infância se converta em rebeldia e essa rebeldia seja boa e linda, e doce e eterna… a ponto de te fazer questionar a que veio até o último suspiro.



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"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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