Tivemos um pai-avô. Quando nasci, ele acabara de fazer 62 anos. Não bastasse, depois de mim vieram mais quatro! Aos quase 70 ele segurou o caçula pela primeira vez. Trinta e sete anos separavam a filha mais velha, do primeiro casamento, do irmão mais novo. Ao completar 80 anos, fez constar no convite de sua festa de aniversário:

“A juventude é uma dádiva que se pode ter em todas as idades; inclusive quando se é jovem.”

Ele tinha a alma jovem, o corpo forte e o coração bom. Se algo delatava a idade era apenas o branco dos cabelos e algumas palavras e expressões que gostava de usar. Sempre achei graça quando as amigas comentavam “isso é palavra do seu pai”. Sim, era. Que criança fala ‘compêndio’? Pois eu falava, assim como me calava por completo quando começava o ‘noticioso’. Seus pedidos não eram uma ordem, eram apenas pedidos, atendidos com prontidão – da mesma forma eram cumpridas as várias ‘incumbências’ recebidas. Ao lado dele, tudo era leve e proveitoso. Com meu pai aprendi a datilografar, pintar a casa (evento que pedia ‘roupa de briga’), gerenciar as contas, organizar documentos, ‘subscritar’ envelopes, cuidar dos bichos, fazer compra de supermercado, passar café. Que prazer ele tinha em arrumar a mesa para o café! Se alguma amiga felizarda ficasse até o final da tarde, ele buscava ‘petit fours’ e servia junto com um afetuoso “mais café?”.

Os filhos, apesar de tantos e barulhentos, jamais lhe tiravam do sério. Ele era mestre na arte de educar pelo exemplo, e seu exemplo era a ‘parcimônia’. Quando as crianças entravam em atrito, ele, muito sério, advertia: “olha que vou te colocar atrás da porta com a cabeça entre as orelhas”, ou, ainda, “com o calcanhar pra trás”. Era o suficiente para encerrar o entrevero. Ninguém queria ir parar atrás da porta, ainda mais nestas lamentáveis condições.

Em nossos trajetos pela cidade a bordo da Belina verde, trocando ideias e confidências, ele me perguntava se eu estava ‘simpatizando’ com alguém. Quando eu contava, meio ‘encabulada’ alguma simpatia especial, ele simulava surpresa e dizia “agora você me pegou de calças curtas”.

Ele chamava aniversário de ‘festa de anos’, pedia uma ‘salva de palmas’ e arrematava com ‘meus apla-ú-sos’ – assim mesmo, “u tônico”, que era para fazer graça. Ele chamava gol de ‘gôlo’, guidão de ‘guidón’ e salário de ‘soldo’. Ele usava ‘sapato-tênis’ e ‘safári de cor cáqui’. Ele me ajudou nas lições de casa formulando ‘mnemônicos’ que guardo até hoje. Ele me ensinou palavras difíceis como ‘claviculário’ e eu guardei as chaves do seu coração.

Meu pai dizia que iria escrever suas ‘reminiscências’. Não tenho dúvida que seria uma bela história, pois foi uma bela vida. Porém, quando finalmente a juventude abandonou seu corpo ainda forte, levou junto suas lembranças. Foram tempos de ausência lógica e intensa presença emocional. Naquela época compreendi que, além de cuidar das chaves, eu me tornara guardiã das suas memórias. “As palavras de meu pai” fazem parte delas. ‘Achei por bem’ lhes contar.

Mônica Moro Harger

Arquiteta, tia, madrinha de sete. Apaixonada por gente e palavras, desde cedo fez dos “escritos” uma forma de homenagem: à vida, à família, aos amigos. No início de 2018 reuniu alguns textos no facebook e ganhou leitores assíduos, mais amigos e novos sonhos. Desde então, divide os projetos com as palavras - além do cinema com os afilhados (um ou dois de cada vez) e do café com a “menina da sala ao lado”. Vive em Curitiba, onde coleciona memórias, ímãs de viagem e recados na geladeira.

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Mônica Moro Harger
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