Aquele ano foi terrível para Araceli. Não éramos exatamente amigos. Eu a encontrava na casa de um casal de amigos e sempre a ouvia falar da vida. Aquela mulher merecia um prêmio. Sério. O marido era um sacana, sua loja de roupas de banho estava falindo, ela ganhava peso, apesar de tantas dietas malucas, semana após semana – Mas eu continuo forte. Eu sigo firme. Não vou desistir não! – dizia, mexendo seu famoso assado no tempero, com uma tristeza intacta por trás daquele sorriso incrivelmente insistente.

Um dia a encontrei no shopping. Onze milhões de habitantes nessa cidade e eu a encontrei olhando uma vitrine. Atravessamos a rua pra tomar um suco em um beco charmoso cheio desses food trucks. Ela tentou falar de outras coisas, mas claro, seu coração queria falar do marido, da loja que sua mãe deixou, dos quilos que a incomodavam – Tem sido difícil. Nem eu sei como aguento. Mas eu li um texto seu esses dias que falava sobre isso. Sobre não desistir – me contou em tom de elogio. Aquilo me incomodou profundamente.

Aquele texto não era pra ela – Araceli, eu sei que vai parecer estranho o que eu vou dizer, mas… desista. – ela estava em choque – Como assim, desistir? – com o copo gigante de suco congelado no ar – Não basta perseverar. Nós também precisamos entender, sentir se estamos insistindo na direção correta. Às vezes, enquanto todo mundo diz pra gente continuar, nós temos que saber se aquele caminho merece mesmo nosso esforço. Existem caminhos superdifíceis que simplesmente não levam a lugar nenhum. A vida tenta muito sabiamente nos mostrar isso, como uma mãe delicada. A gente é que não vê – disse, abaixando o copo dela com cuidado enquanto segurava as suas duas mãos.

Vez ou outra, a gente precisa parar de machucar os pés, dar murro em ponta de faca, ter a coragem de deixar pra lá. Um relacionamento infeliz que pede desistência pode dar espaço a uma história pela qual valha verdadeiramente a pena lutar. Um sonho que nem é nosso, um emprego que nos diminui, a carreira que escolhemos lá atrás, quando nem sabíamos quem éramos de verdade. Talvez você precise simplesmente desistir agora. É fácil reconhecer um caminho que é nosso. Mesmo na dificuldade, mesmo na dor, mesmo nas noites insones, ele se mostra nosso, flui, ainda que devagar.

Um ano depois reencontrei Araceli no mesmo lugar. Dessa vez, fui visitá-la na inauguração do seu próprio food truck. Foi lá que conheci seu namorado novo, aquele poço de carinho, correndo pra um lado e pro outro pra atender todo mundo, enquanto ela se matava de cozinhar com um sorriso insistente no rosto. Ela não emagreceu. Continua lutando. Embora Beto a agarre o tempo todo, a implorando para não mudar. Minha comida chegou com algo escrito no guardanapo. Um recado de Araceli dizia “Fui feliz bem mais quando aprendi a desistir do que não era pra mim”.

Diego Engenho Novo

Escritor, publicitário e filho da dona Betânia. Criador do blog Palavra Crônica, vive em São Paulo de onde escreve sobre relacionamentos e cotidiano.

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