Cem anos de memória

– Trouxe para senhora um bolo de fubá que acabei de fazer e um queijinho que a mamãe fez semana passada_disse a menina enquanto desembrulhava o pano de prato surrado, mas tão alvo a ponto de denunciar o asseio familiar.

Na velha casa onde morava, a poucos metros abaixo da estrada, as janelas e portas eram de madeira reaproveitada de um casarão demolido. O telhado não tinha forro de modo que toda conversa no quarto ao lado não era segredo para ninguém. Quatro cômodos espaçosos abrigavam as camas cobertas por colchas de retalhos seguidas de caixas de madeiras que guardavam vestimentas e lençóis. Na frente da habitação, o primeiro ambiente era uma sala para recepcionar as visitas, e logo depois, o cômodo que receberia uma TV somente no meio da década de 1980 graças à chegada da energia elétrica.

Do lado de fora, uma varanda grande servia de passagem entre os dois quintais de terra batida. Ali ficavam o fogão a lenha, um poço d’água fechado por uma tampa pesada e uma mesa que servia para quase tudo, menos sentar-se para as refeições. Uns 20 metros à frente, a velha casinha onde se fazia as necessidades se perdia no quintal ocupado por mangueiras, bananeiras, pés de laranja, café e toda sorte de planta que crescendo naquele chão, tinham a finalidade de alimento. As galinhas com seus olhos medrosos ciscavam em liberdade, enquanto os porcos chafurdavam na lama, presos no chiqueiro. O curral ao lado exibia uma dúzia de bois, bezerros e vacas que ofereciam o leite diário ou mesmo a carne em dias mais especiais, como os de casamentos.

A casa que abrigava 14 pessoas, o pai, a mãe e os filhos, os via seguir rumos diferentes conforme a hora. Acordavam junto com o nascer do sol e enquanto os pequeninos iam para a escola caminhando pelas trilhas dos pastos, os mais velhos se dividiam entre a colheita e o pastoreio de animais.

Nada ali dependia de ser comprado: o café que nascia no quintal era torrado no fogão e triturado no velho moedor cujo metal era negro como o pó. Nele, os futuros netos teriam o prazer de rodar a manivela para observarem, extasiados, não só o perfume que os grãos moídos exalavam, mas também o pó fino que vertia do outro lado da ferramenta.

O polvilho fresco secava no jirau curtido pelo sol da tarde. O feijão e suas folhas secas, esparramadas no terreiro, serviam de lona afiada para as crianças que não se importavam de riscar a pele já tão castigada pelo sol e a poeira.

Na máquina de costura Singer, movida a pedal, as calcinhas das meninas eram feitas com tecido de algodão cru, assim como nela também eram confeccionados os vestidos e as calças curtas dos meninos.

À noite, a lamparina acesa graças à queima do querosene, iluminava as poucas horas de escuridão em que todos ainda estavam acordados, e se a falta de distrações noturnas aborrecesse, bastava se embrenhar pela estrada escura para visitar uma tia que morava a poucos quilômetros dali.

Nessas caminhadas, não só os bichos de vida noturna cruzavam os caminhos, mas os fenômenos inexplicáveis como bolas de luz que os acompanhavam sobre as árvores ou até mesmo espectros iluminados que desapareciam entre a mata. O medo era tão puro quanto a comida e toda aparição inexplicável era justificada por benção ou castigo divino.

As necessidades eram básicas: o alimento vinha da horta, as roupas eram poucas e costuradas pela mãe, os sapatos eram itens nobres, reservados somente para uso nas festas religiosas. Não haviam brinquedos fabricados, o que tornava o rio raso, os galhos e os cabelos das espigas de milho, objetos lúdicos destinados a outras mil finalidades infantis.

Era uma vida simples porque simples era a vida de todos. E todas essas singelezas estavam impressas na fala e no olhar daquela gente, temente a Deus, honesta por essência e hospitaleira por vocação.

– Pronto! Já parti… Vamos comer? – convidou a menina enquanto servia a velha doente. E enquanto comiam o bolo e o queijo, acompanhados de um café coado no pano, essas mulheres separadas pela idade, comungavam em silêncio e em total ignorância, de uma vida fadada à inexistência.



LIVRO NOVO



Cris Mendonça é uma jornalista mineira que escreve há 14 anos na internet. Seus textos falam sobre afeto, comportamento e Literatura de uma forma gostosa, como quem ganha abraço de vó! Cris é também autora do livro de crônicas "Mineiros não dizem eu te amo".

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui