Ana Macarini

Pelo direito de descaber

A gente nasce por puro descabimento. Não fosse o espaço interno da mãe, tão acolhedor, tornar-se exíguo e desconfortável, talvez ficássemos lá por muito mais do que 40 semanas.
É da nossa natureza adiar confrontos, deixar pra depois, esperar que tudo se resolva com o tempo. Ahhhhhh… o tempo! Esse modulador exigente de nossas vidas.

O tempo é senhor de nossa aparência exterior e da nossa disposição interna. O tempo desenha histórias em nosso rosto, arredonda nossas formas femininas, põe limites em nossas ousadias, diminui nossa necessidade de sono e aumenta nossa necessidade de repouso.

Antagonista por natureza, esse senhor do destino também traz presentes, que só podem ser conquistados no decorrer de sua passagem. É o tempo que nos ajuda a esquecer das perdas, que nos torna menos reativos, que nos recheia de sabedoria e nos cobre com a certeza de que não há certezas nessa vida.

E é por isso que cabe a nós tentar estabelecer com esse companheiro de jornada, uma relação mais presente e repleta de diálogos íntimos. A falta de intimidade com o tempo nos torna reféns dele. E o cativeiro do tempo é implacável e injusto.

Nascer também nos coloca numa perspectiva inteiramente nova. Se antes a relação de interdependência entre nós e nossa mãe era intrínseca à nossa condição, aqui fora a coisa muda de figura.

Ao nascer temos de contar com a sorte de ter sido estabelecido um laço afetivo entre a mulher que nos gerou e a nossa vida que se inaugura. Vínculos formados garantem que receberemos cuidados, afeto, alimento e os estímulos necessários para que sejamos instrumentalizados para seguir por conta própria, num futuro relativamente distante.

E se os vínculos não se estabelecerem, ficamos expostos às agruras da vida, desprotegidos e vulneráveis. Acabaremos dando um jeito de nos adaptar, seguiremos aos trancos e barrancos e acolheremos em nosso corpo e nossa alma, as deformações inevitáveis que o abandono inflige.

O fato é que de nada adianta ficar chorando pelo leite que azedou, porque se tivesse derramado, ainda haveria opção de resgate. Não serve de nada ficar ruminando o passado, a falta de afeto, a carência, a desatenção.

A vida se descortina, cheia de novas oportunidades a cada vez que temos a ousadia de sair da cama e enfrentar o mundo, e aprender a fazer escolhas, e deixar os pesos no chão, para poder caminhar de ombros e costas libertas. Lutemos pelo direito de descaber, porque de gente encaixotada o mundo já está cheio demais.

Imagem de capa: lzf, Shutterstock

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

Share
Published by
Ana Macarini

Recent Posts

Anderson Leonardo, do Molejo, falece após luta contra câncer inguinal. Entenda a doença rara

O mundo da música brasileira está de luto com o falecimento de Anderson Leonardo, aos…

2 dias ago

Mãe e sua filha chamam a atenção por morar há três meses no McDonald’s do Leblon

Há quase três meses, a rotina incomum de duas mulheres tem chamado a atenção na…

2 dias ago

Gato usa parque aquático canino para fazer natação e emagrecer

No abrigo Vanderburgh Humane Society, em Indiana, nos Estados Unidos, uma história peculiar ganha destaque:…

3 dias ago

Linn da Quebrada anuncia pausa na carreira para tratar depressão: “É necessário parar, respirar e cuidar”

A renomada cantora e ex-participante do reality show Big Brother Brasil, Linn da Quebrada, revelou…

5 dias ago

Porsche que gerou acidente fatal atingiu 156 km/h antes de batida: laudo revela detalhes chocantes

Um laudo da Polícia Técnico-Científica revelou que o Porsche conduzido pelo empresário Fernando Sastre de…

5 dias ago

Davi do BBB24 pede desculpas a Mani Reggo em meio a ‘mistura de emoções’: “Manter meu propósito”

No último domingo, 21 de abril, Davi Brito, vencedor do BBB24, recorreu às redes sociais…

6 dias ago