André J. Gomes

Ter amor é não ter dono nem ser dono de ninguém

Imagem de capa: Evgeniy pavlovski, Shutterstock

De uma vez por todas, é urgente esclarecer três coisas: o amor não sobrevive às grades, gente não é animal de estimação e segurar quem quer que seja ao seu lado, a qualquer custo, não é um relacionamento amoroso. É prisão domiciliar.

Tem gente por aí achando que o amor é a mesma coisa que “posse”, aquilo que a gente tem, sim, sobre objetos e propriedades particulares. Nunca, jamais, em momento nenhum, sobre pessoas.

Para esclarecer as coisas, “posse responsável” é o que você tem, ou deveria ter, em relação a um cachorro, um gato, uma cacatua, um papagaio, uma tartaruga. Já “responsabilidade” é o que você tem, ou deveria ter, em relação a tudo na vida, incluindo gestos e atitudes, compromissos pessoais e profissionais, direitos e deveres, pessoas e até, olha eles aí de novo, animais de estimação.

Pais e mães não têm a posse de seus filhos. Têm a responsabilidade de criá-los com decência, amor, respeito, valores e essas coisas tão caras e cada vez mais raras. Maridos, esposas, namorados e namoradas não têm posse nenhuma sobre seus parceiros. Têm com eles algum tipo de responsabilidade que a cada caso se estabelece e se respeita. Tentar, ou permitir, que essa responsabilidade se transforme em posse é nada além de uma perversão, uma ação medonha, uma tara bizarra e uma doença grave.

Levando-se em conta que a escravidão há tanto tempo foi, ou deveria ter sido, oficialmente abolida, é justo afirmar: pessoa nenhuma é dona de outra. Quem desobedece essa regra básica são os criminosos que ainda praticam tráfico de gente e trabalho escravo. Se você não se encaixa nessa descrição, não pode mandar na vida de ninguém que não seja você mesmo ou, no máximo, o seu animal de estimação. E olhe lá!

Posse, infelizmente, é algo que se exerce com ou sem responsabilidade. Há proprietários responsáveis e irresponsáveis de todo jeito por aí. Donos que não cuidam direito de seus cachorros, motoristas que transformam seus veículos em armas letais, donas de casa que desperdiçam água “varrendo” a calçada com o esguicho. Tem de tudo.

O sujeito esquentadinho diante da televisão não consegue mudar o canal e faz o quê? Soca o controle remoto que, afinal, é dele. Em sua percepção estrábica, não lhe ocorre verificar as pilhas. Ele simplesmente dá cacetadas no objeto para ver se volta a funcionar. Em outro canto, alguém esquece de passar no posto de gasolina e seu carro para no meio do caminho. Ele fica possesso e descarrega sua raiva esmurrando o painel do veículo, quando deveria, pela lógica da culpabilidade, descer do carro e bater a própria cabeça contra a sarjeta.

Nessas duas situações o sentimento de posse, real ou imaginária, dá aos indivíduos em questão o direito, real ou imaginário, de agredir os objetos sob sua posse. No caso, posse irresponsável, uma vez que a posse responsável é aquela que preserva e cuida, seja de um carro que não pode andar sem gasolina, seja de um cão que precisa de afeto, cuidados, banho, tosa, visita ao veterinário e bons tratos de forma geral.

Seguindo esse raciocínio, é muito comum imaginar que um namorado equivocado, pensando ter posse sobre a “sua” namorada, se sinta no direito de socá-la quando ela não fizer o que ele quer. Afinal, ela é “dele”. E que um marido “traído” ache normal espancar a mulher tão somente porque ela não o ama mais e pretende seguir em frente sozinha. Incapaz de aceitar a separação de sua “propriedade”, ele é capaz de matá-la. Perversão suprema da sensação de posse. E acontece muito por aí.

Não, eu não estou defendendo as chamadas “relações abertas”. Estou defendendo o amor honesto, trabalhador. Amor que, vão me desculpar os inquilinos da certeza suprema, também pode acabar. E quando o amor é “de verdade” mesmo, aquele que existe para além dos contos de fadas, os amantes se amam tanto que são capazes de se deixar ir cada um para o seu lado, quando já não puderem mais trabalhar por ele.

Posse e amor são sentimentos definitivamente diversos. Pessoas que se amam podem até possuir juntas uma série de coisas: carro, casa, dinheiro, lembranças. Nunca uma a outra. Porque pessoas não são coisas. São pessoas. E pessoas com amor e vergonha na cara não têm dono. Nem se acham donas de ninguém.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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