Imagem de capa: pio3, Shutterstock

Que venha. Seja lá o que for, venha. A gente aceita. Encara, luta, cai, levanta, vai em frente. Aceita o que foi, o que é e o que vem. Não, nós não somos conformistas, permissivos, acomodados, medrosos, trouxas. Nós somos gente. E a gente aceita.

Aceita até mesmo quando rejeita, recusa, esperneia, grita. A gente aceita o inaceitável em conclusão íntima. O teto desaba, o assoalho rompe, as paredes apertam. E a gente aceita.

Aceita pagar por serviços odiosos, aceita esperar de pé em filas enormes por um atendimento de cara feia. Aceita circular de bandeja em mãos por praças de alimentação lotadas até encontrar uma mesa vazia, engordurada, ao lado da lixeira entupida, transbordando sujeira dos outros. A gente aceita o que tem.

Amores capengas e amantes ausentes a gente também aceita. Aceita pela mera ilusão de não estarmos sós.

A gente aceita passar a semana inteira esperando a “sexta-feira, sua linda”, analgésico e antídoto para os venenos de todo dia. A gente aceita. Aceita tudo que não traz nada. Aceita as críticas e pouco reflete sobre elas, senão para nos convencer de que “errado” é quem as fez e não nós mesmos, nós e nossa perfeição religiosa e autoenganada, fundamentada em versículos bíblicos descaradamente adulterados.

Para amansar antigas feras, a gente aceita raciocínios impostos por terapeutas e analistas desinteressados, iludidos de que chegaremos à nossa subjetividade por discernimento próprio.

A gente aceita pagar mais caro por aquilo a que naturalmente tem direito pela simples lógica da civilidade e do princípio da vida em sociedade. Um espaço dois centímetros maior na poltrona do avião, médicos que nos examinem com o mínimo de cuidado, um bairro calmo para dormir à noite sem esperar que alguém invada nossa casa na madrugada, um atendimento decente em qualquer canto.

Que nos culpem pelo que não cometemos, só para fugir de discussões cansativas, a gente aceita de bom grado. E daí? Que mal há em não querer gastar tempo discutindo balela? A gente aceita, aceita que é mais fácil.

Aceita porque, afinal, por mais que nos defendamos, aqueles que nos culpam de qualquer coisa não vão mesmo acreditar. Se o fizessem, assinariam para si mesmos um vergonhoso atestado de covardia. Então aceitam o cargo autoimposto de suprassumos das ciências, reis da cocada preta, generais da banda.

A gente aceita e se acostuma a viver com medo, aceita a morte lenta e o tempo breve, aceita sentimentos burocráticos e cobranças descabidas. Aceita meia hora de amor e duas paçoquinhas.

A gente aceita tudo. Aceita o que deu pra fazer, aceita o mínimo e acha o máximo. Aceita o mais provável e o menos pior. A gente aceita. A gente aceita que a vida ajeita.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

Share
Published by
André J. Gomes

Recent Posts

Anderson Leonardo, do Molejo, falece após luta contra câncer inguinal. Entenda a doença rara

O mundo da música brasileira está de luto com o falecimento de Anderson Leonardo, aos…

1 dia ago

Mãe e sua filha chamam a atenção por morar há três meses no McDonald’s do Leblon

Há quase três meses, a rotina incomum de duas mulheres tem chamado a atenção na…

1 dia ago

Gato usa parque aquático canino para fazer natação e emagrecer

No abrigo Vanderburgh Humane Society, em Indiana, nos Estados Unidos, uma história peculiar ganha destaque:…

2 dias ago

Linn da Quebrada anuncia pausa na carreira para tratar depressão: “É necessário parar, respirar e cuidar”

A renomada cantora e ex-participante do reality show Big Brother Brasil, Linn da Quebrada, revelou…

4 dias ago

Porsche que gerou acidente fatal atingiu 156 km/h antes de batida: laudo revela detalhes chocantes

Um laudo da Polícia Técnico-Científica revelou que o Porsche conduzido pelo empresário Fernando Sastre de…

4 dias ago

Davi do BBB24 pede desculpas a Mani Reggo em meio a ‘mistura de emoções’: “Manter meu propósito”

No último domingo, 21 de abril, Davi Brito, vencedor do BBB24, recorreu às redes sociais…

5 dias ago