Ainda resto eu

Imagem de capa: Marjan Apostolovic, Shutterstock

Ainda resto eu, aqui, deitada nesta cama. Mesmo que esta cama continue a parecer grande demais para uma pessoa só — há noites em que é gigante —; mesmo que continue a reservar(-te) o lugar — vazio e frio —; mesmo que os meus braços não encontrem os teus braços para se envolverem num aconchego demorado — que dure a noite inteira —, ainda resto eu.

Vou dizer-te uma coisa fantástica. Sempre foi assim. No final, ainda restamos nós. No final, restamos sempre nós.

Não percebo porque teimamos em fazermo-nos tanto mal. Mais do que a capacidade que o ser humano tem em fazer mal aos outros — consciente ou inconscientemente — é a capacidade que tem em fazer mal a si próprio. Desde muito cedo que todos tentam que sejamos capazes de tomar conta de nós; que sejamos responsáveis e que optemos sempre pelos melhores caminhos, companhias e decisões, para que a vida nos sorria sempre – e, se não poder sorrir sempre, que sorria a maioria das vezes. Até nas aulas de Religião e Moral ensinavam isso, caramba. E quem não tivesse Religião e Moral que não desanimasse. Provavelmente, teria catequese. Isto para dizer que éramos bombardeados, em todas as frentes, para que esta lição ficasse bem estudada. Para que nunca mais a esquecêssemos. Deveríamos formar uma espécie de mantra na nossa cabeça: «Tens de saber tomar conta de ti. Ninguém vai fazê-lo por ti.» E o que é que fizemos na primeira oportunidade que tivemos? Prevaricamos, pois, claro. Porque o único mantra que parece que tivemos capacidade para decorar foi: «O fruto proibido é sempre o mais apetecido.»

Isto não nos causaria grandes mossas se as coisas corressem sempre bem. Se conhecêssemos uma pessoa, se nos apaixonássemos perdidamente por ela e se essa mesma pessoa se apaixonasse perdidamente por nós. Éramos felizes para sempre. Fim de história. Mas desconfio que o que se passa — ou, pelo menos, já se passou — com a maioria de nós é ligeiramente diferente. Recuemos, então, um pouco. Apaixonamo-nos por alguém. Temos o privilégio desse alguém se apaixonar por nós. O que fazemos a seguir? Depositamos a nossa vida nas mãos da outra pessoa. Desconfio que o ser humano é assim por natureza. Gostamos que os outros cuidem de nós e depressa passamos a depender disso. Depressa passamos a viver só disso. Fazemos com que a nossa felicidade dependa da outra pessoa. Passamos a ser felizes só enquanto formos felizes com alguém. Se, por acaso, um dia, temos o azar que essa felicidade, a dois, acabe — e quantas vezes já acabou para cada um de nós? —, parece que até a respirar desaprendemos. Não sabemos como se vive. Já não sabemos viver. Já não queremos viver. Já não faz sentido viver. Não assim. Não sem que o outro nos diga como fazemos para ser felizes. E é aí que percebemos que não restou nada de nós. Demos tudo e não ficou nada. Nem nós. E é assim tantas vezes quantas for necessário para aprendermos que, sempre que olhamos para o lado, encontramos a mesma pessoa – ou o pouco que resta dela. Porque não foste tu — que, um dia, achaste que o «felizes para sempre» não funcionava mais connosco — que estavas lá para me ensinar como se deixava de chorar. Não foste tu — que me dizias que o que tínhamos era especial — que me disseste como se voltava a adormecer sozinha numa cama, vazia e fria. Nem sequer foste tu que me vieste relembrar que, afinal, eu ainda era capaz de ser feliz. Não eras tu quem estava a meu lado – como tantas vezes me prometeste. Não. Era eu. Fui sempre eu que restei.

É nesse preciso momento — no momento que em só restamos nós — que percebemos que somos as únicas pessoas, que nos derrubamos e a seguir nos erguemos. Somos a maior e a melhor experiência em resiliência humana. Depois de acharmos que nada mais faz sentido sozinhos, passamos a ter a certeza de que, se não fizer sentido sozinhos, jamais vai fazer sentido com alguém. Aos poucos percebemos que, afinal, ainda restamos nós. No final, restamos sempre nós. E o que, ontem, pensávamos que não voltava a ser um sorriso, hoje, é uma estridente gargalhada. E o que, ontem, tínhamos a certeza de que não fazia mais sentido, hoje, só dessa forma é que faz sentido. E, se ontem dizíamos – desfeitos em lágrimas – que só restávamos nós, hoje, orgulhamo-nos em dizer que, aconteça o que acontecer, ainda restamos nós.

Ainda resto eu, aqui, deitada nesta cama. Mesmo que continue a reservar(-te) o lugar; mesmo que continue a querer uns braços que me envolvam num aconchego demorado — que dure a noite inteira —, esta nunca será uma cama vazia… porque ainda resto eu.



LIVRO NOVO



Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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