Ideias mudam de lugar

Por Rogério Pereira

Nosso tempo juntos diminuiu muito há alguns anos. Precisamos aproveitar cada segundo. Somos dois náufragos agarrados à borda do bote. Cada golfada de ar é a esperança de salvação.

Caminhamos de mãos dadas até o carro. Ela está muito feliz. Tem quase nove anos e parece uma criança feliz. Nunca tenho certeza. A manhã é nublada. Já nos acostumamos a manhãs nubladas. A cidade que escolhemos para viver é perfeita a um daltônico. Ela corre em direção ao caixa do estacionamento. Quer pagar, digitar a senha, fingir uma vida adulta. Ainda não sabe que a vida adulta nos esmaga contra a parede o tempo todo. Tem os cabelos longos. O corpo esguio, espichado, lhe entrega graça e beleza.

— Pai, o dia da doação é nesta semana.

— É mesmo? Doação de órgãos?

— Como assim, pai?

— Quando as pessoas morrem, podem doar seus órgãos.

— …

— Por exemplo, o coração. E outra pessoa pode viver com um coração de alguém que morreu.

— …

— Ou as córneas, os olhos. E alguém poderá enxergar de novo.

— …

— Dá para doar vários órgãos. Não sei exatamente quantos e quais.

— É. Você não é médico.

— Não sou nada.

— É escritor.

— …

— Pai.

— O quê?

— Dá para doar o cérebro?

— Acho que não, filha.

— É. Seria estranho alguém sair por aí com as ideias dos outros. As ideias mudariam de lugar.

Ligo o carro. E a levo para casa.

………..

via Vida Breve



LIVRO NOVO



Blog oficial da escritora Fabíola Simões que, em 2015, publicou seu primeiro livro: "A Soma de todos Afetos".

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui