Que a gente nunca perca o poder de se encantar

Quando o piloto da obra O Pequeno Príncipe, uma obra tão cheia de significados do doce Antoine de Sain-Exupéry, perguntava às pessoas, quando criança, sobre o que viam em seu desenho e elas respondiam um chapéu ao que era um elefante dentro de uma jiboia, acredito que ele estava a buscar no outro o delicado poder de se encantar.

Muitas pessoas adultas, com o tempo, entram no automático e começam a delinear a vida estritamente com a razão, já que, sedutora como é, ela quase sempre traz consigo explicações plausíveis. A razão é mestra em nos fazer traçar planos meticulosos que dizem de uma vida sem grandes sobressaltos.

Depois dos trinta anos descobri que a razão é campeã em ver chapéus no lugar de jiboias. Ela é convincente, durona e sabichona e quase sempre nubla o poder que temos em nós de nos surpreendermos com a vida, nubla a nossa capacidade de nos encantarmos com as coisas simples.

Então como disse tão bem Adélia Prado, com o passar do tempo, em certas circunstâncias, um certo dia, ao olhar uma pedra, a gente vê só pedra mesmo. A gente passa a abrir mão da poesia das coisas. E depois de abrirmos mão dessa poesia tão delicada, tão bem vista pelas crianças, há ainda entre nós aqueles que apontam cheios de si uma pedra e ditam aos outros, categoricamente, ser aquilo só uma pedra mesmo, discordando dos que veem nela poesia. Discordando dos que conseguem enxergar a alma da pedra.

A razão diz “vocês não veem que isso é só um chapéu”.  E então quase sempre nos deixamos convencer pelo óbvio, que nunca é tão óbvio assim, e seguimos nosso caminho, vendo aquilo que nos disseram que deveríamos ver. Ignorando os pequenos encantos da vida.

Quando leio Zack Magiezi dizer em um de seus escritos “dentro desse pequeno quarto, cabe um futuro inteiro” em uma nota na qual ele descreve o seu amor a uma mulher etérea e noto nos comentários alguém afirmando que a espera por essa mulher idealizada é a receita para a solidão, meus olhos leem na infeliz afirmação desse alguém a razão a gritar “chapéu”. Em contrapartida, a nota do poeta salta-me irremediavelmente aos olhos como “um elefante dentro de uma jiboia”. É o caminho dos sonhos possíveis que o poeta aponta delicado. E é esse o caminho que os tocados pelo encantamento enxergam. A poesia quase sempre fala do grande amor que encantado, encanta e desperta os sonhos adormecidos em nós.

Que a gente possa ver mais jiboias e menos chapéus na vida. Que a gente possa se deixar tocar pela poesia das coisas. Que a gente possa se deixar encantar pelo mundo e pelo que de bom há nele. Que a gente possa permitir que a beleza aflore onde quer que ela exista. Que a gente possa enxergar além do óbvio. Que a gente seja vírgula e reticências, mas nunca ponto.

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Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.

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