A velhice chega de mansinho

Por Antônio Carlos Viana

Meu pai começou a envelhecer pelos olhos, que amanheciam a cada dia mais machucados, como se ele tivesse passado a noite chorando. Mas meu pai nunca foi homem de chorar, nem mesmo depois que minha mãe se mandou com um rapaz bem mais jovem do que ela. Desde então, ele passou a chamá-la de “finada”, como se isso não me dissesse respeito. Quando eu perguntava por ela, ele dizia que, se eu quisesse mesmo saber, que fosse atrás e ficasse por lá, nunca mais o procurasse. “Puta não tem destino”, era assim que ele falava, como se eu não fosse seu filho. Eles se casaram muito jovens só porque ela engravidou de mim e ele jogava isso na minha cara sempre que a vida lhe pregava mais uma.

De minha mãe só fiquei sabendo que foi morar na América, imigrada à força com o tal rapaz. Meu pai rasgou todas as fotos dela e depois jogou no lixo. Consegui salvar uma, que deu para remendar. Ele lamentava que ela não tivesse se afogado no rio Grande ou morrido seca no deserto. Mas parece que tudo correu bem. Ela nunca mais deu notícia, nem a família dela sabe direito por onde ela anda. Falam que ficou rica, sabia fazer unha como ninguém, e as americanas gostam disso. Meu sonho também era imigrar, mas foi ficando cada dia mais distante, até sumir de vez.
Meu pai tocou sua vida como se eu nem fosse seu filho. Não deixei de estudar porque os padres do colégio me aceitaram em troca de pequenos serviços. Um deles era fazer banca de português e francês com os meninos mais fracos. Por meu pai, eu teria largado logo os estudos para trabalhar numa oficina mecânica. “Estudo só atrapalha”, era o que ele sempre dizia. Só não entrei na faculdade para não ficar dependendo dele por mais tempo.

Acho que a raiva de meu pai foi crescendo porque, a cada dia, eu ficava mais parecido com minha mãe: pernas curtas e grossas, o mesmo tipo atarracado, bem diferente do dele, todo comprido e seco. Quando quer me ofender, diz que não entende como as pessoas se deixam engordar, parece que não sabem dominar a própria boca, engolindo tudo que veem pela frente. Acho que minha mãe deve estar bem gorda, a família dela é só de gordos.

Desde que me alcanço, me vejo lutando contra a balança, para fugir das calças largas que via nos meus tios, mas é muito difícil a gente se livrar do corpo que herda dos seus.
Sempre me doeu ver meu pai desviar a vista de mim quando se sentava à mesa. Quando eu era pequeno e as pessoas queriam infernizá-lo, era só dizer que eu estava cada vez mais parecido com minha mãe. Ele me arrastava e, em casa, me dava uma colher de sopa bem cheia de óleo de fígado de bacalhau. Quando cresci, parei de tomar, num primeiro sinal de independência. Hoje tento uma aproximação e não consigo. Ele sempre me afasta, como se estivesse vendo o diabo em mim. Me olho no espelho e sinto que realmente tenho os olhos de minha mãe, redondos e pretos, sempre espantados com o mundo. Sim, eu me espanto com a frieza de meu pai, com sua falta de amor por mim. Nunca foi capaz de me dar um abraço. Esperar ouvi-lo dizer que me ama seria querer demais. Quando criança, chegou a fazer urna coisa que nunca vou esquecer. Como eu era muito apegado a um gato que tinha encontrado na rua, num dia de raiva, ele o arremessou contra a parede, salpicando tudo de sangue, e ainda me castigou porque me descontrolei a chorar.

Até entendo meu pai ter se desiludido da vida. Namora da firme, ele nunca mais quis ter. Arrumava umas mulheres de vez em quando. Trazia aqui pra casa e, no outro dia, as despachava aos berros, depois de muito discutir. Nunca pagava o que elas pediam. Dizia que elas não sabiam fazer direito o que ele gostava, isso com as palavras mais sujas, como se durante a noite elas não o tivessem feito soltar belos gemidos. Quando se sentava à mesa para o café, eu via suas costas lanhadas, arranhões que não pareciam feitos só com as unhas. Era o único momento em que via seu rosto mais aliviado, como se aqueles lanhos fossem o sinal de que a vida às vezes podia ser boa. Eu ficava com vergonha dele e daquelas mulheres de saia curta e peitos derramados, a rua toda cochichando que, se o Juizado soubesse, ele perderia a minha guarda. Tive muitos pesadelos por causa disso, mas felizmente nada aconteceu. Quando cresci um pouco mais, ele as trazia e, de madrugada, as empurrava para o meu quarto, num gesto de amizade que me deixava tão comovido que eu não conseguia fazer nada com elas.

O tempo passa sem a gente sentir. Um belo dia a velhice chega e se instala de vez. Penso muito em minha mãe. Mulher se destrói mais rápido e ela deve estar imensa. Fico imaginando como teria sido seu envelhecimento, porque aí eu saberia como seria o meu. Em parte, eu já era igual ao meu pai, dirigindo um táxi desembestado pelas ruas, com a perspectiva de ganhar cada vez menos. Acho que minha mãe deve ter envelhecido pelo queixo, que na foto que salvei já dava sinais de divisão. Ou talvez pelas bochechas, que desabam com tanta facilidade. Se alguns começam pelo queixo ou pelos olhos, outros começam pela cintura, onde as gorduras se depositam, sem nenhuma delicadeza.
Antonio Carlos Viana

Texto extraído do livro “Cine Privê”, Editora Cia. das Letras – São Paulo (SP) – 2009 – pág. 51.



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