O que nossos olhos quiseram enxergar

Tem um texto de Lya Luft que gosto muito intitulado “Pensar é transgredir”. Num dado momento ela diz:
“O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.”

O que gosto nessa frase é a constatação de que nosso olhar confere identidade, constrói enredos, atribui sentimentos, projeta desejos, anula frustrações e elabora desfechos conforme suas próprias necessidades _ nem sempre legítimas_ mas que dão algum sentido dentro dos limites que podemos suportar.

Terça feira, o jogo entre Brasil e Alemanha terminou na maior derrota do futebol brasileiro. As crianças, mais confiantes, sofreram na proporção de seus sonhos. Como tenho repetido em dois posts seguidos, mais uma vez meu menino chorou. Chorou como outros milhões de meninos que confiaram na seleção de braços abertos e coração disponível. Talvez, mais do que isso, enxergaram na seleção a materialização de suas expectativas, vontades, sonhos, alegrias. E é esse olhar, mais do que a realidade, que se evaporou. É esse olhar, que conferia tanta identidade àqueles garotos-jogadores, que deixou de existir. Porque como dizem por aí, as coisas não são como são, e sim como as vemos. E assim, cada criança imaginou estar diante de uma seleção campeã, e projetou essa visão imatura sobre aqueles jogadores talentosos, mas despreparados taticamente.

Se compramos a ideia de que eram fenômenos futebolísticos, acreditamos nessa ideia porque era o que nossos olhos precisavam acreditar. Portanto, quem traiu esse olhar fomos nós mesmos. Nós e nossas expectativas irreais, nós e nossos desejos de ver a seleção _ ainda que despreparada _ campeã.

E é assim também que projetamos em nossas relações aquilo que nossos olhos querem ou conseguem ver. E quando algo não sai conforme o nosso combinado (combinado com aquilo que criamos, imaginamos, esperamos, desejamos), inicialmente é mais fácil acusar _ como fazemos com a seleção_ e só depois, devagar, absorver nossos lutos até a possível aceitação (quem sabe com humor, como tem feito o brasileiro, ao transformar a complexidade de seus sentimentos contraditórios em riso e criatividade _ um banquete nas redes sociais!).

A verdade é que muitas vezes não conseguimos enxergar os sinais. Talvez enxerguemos, mas preferimos ver a vida por filtros_ que nós mesmos acrescentamos_ do que encarar as dificuldades, desistências, turbulências e desilusões; numa tentativa de preservar nossa jornada dos tropeços e incompletudes, inerentes a qualquer percurso.

Os sinais sempre estiveram lá, mas preferimos ignorar, pois não faziam parte do script. Do script que nós mesmos escrevíamos e incluíamos quem não pediu para ser incluído. Quem não queria sequer fazer figuração na nossa história. E agora a gente acha que o roteiro foi bagunçado por culpa da seleção, por culpa da Dilma, por causa do Fred, por causa do fulano que nos abandonou, da beltrana que não quer o nosso perdão… até do viaduto que caiu e do SUS que a gente nunca frequentou.
Ou você se esquece que esses jogadores que hoje são um fracasso, até ontem eram gigantes para você? Será que as pessoas mudam, “a Copa foi vendida”blá blá blá… ou somos nós que passamos a enxergar a realidade sem as lentes de aumento?

Claro, é bem mais confortável dizer que foi a realidade que mudou, não nós. Mas quer saber? Chega uma hora em que nossos olhos se habituam com a claridade, com os flashes que revelam bem mais do que gostaríamos… E mesmo que a vontade seja a de voltar para dentro da caverna, para nossos velhos paradigmas que nos serviam tão bem como antigos pijamas conhecidos, já não há mais volta; e a gente sabe disso. Por isso é tão sofrido.

Mas faz parte do crescimento. E não há que se falar em traumas. Não há nada de traumático em nossas crianças que choram a derrota da seleção. Elas estão simplesmente aprendendo a lidar com a quebra de contratos. Contratos que cada um sela por sua própria conta consigo mesmo. Quando esses contratos falham, faz parte também. E crescemos um tanto também. Pois percebemos que nossos olhos quiseram enxergar algo que não havia lá. Ao constatar que demos importância demais àquilo que não merecia tanto, vivemos um luto. Mas como tudo, ele também chega ao fim.

Finalmente percebemos que apesar do brilho ter diminuído, nosso olhar ainda é capaz de acreditar novamente; mas certamente com novas programações, como a frase de Lya Luft: “Viver é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.”  



LIVRO NOVO



Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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