O Que há da “Bela e a Fera” em “Cinquenta Tons”?

Depois de assistir à belíssima produção de “A Bela e a Fera” da Disney, ao sair da sala 4 do cinema, quase sem querer, dei de cara com o cartaz da bonita Dakota Johnson como Anastasia em “Cinquenta Tons mais Escuros”. Imaginei que de um lado eu acabara de assistir à história de uma fera que amando e sendo amada por uma jovem encantadora deixava seus dias de maldição para trás e que do outro a sinopse poderia ser a mesma. Poderia.

Anastasia é assim como Bela, adora ler, é apaixonada por literatura inglesa, vive com a cabeça em romances clássicos. Bela demonstra logo de início sua predileção pela leitura. Gosta de romances como o famoso “Romeu e Julieta”. Demonstra estar aberta ao novo e diz sutilmente, com seu exemplar de Shakespeare, que pode sim amar alguém bastante diferente dela.

No entanto, a história adorada por Bela, o romance entre dois jovens italianos apaixonados, Romeu e Julieta, filhos de famílias rivais, guarda bastante diferença do romance citado diversas vezes por Anastasia, o “Tess” de Thomas Hardy. Nesse segundo Tess é subjugada pelo primo Alec e vê-se inclusive abusada sexualmente por ele até finalmente conseguir se livrar de sua influência manipuladora no final do romance. Na trama de Hardy, o verdadeiro amor de Tess é Angel e não Alec, com quem Anastasia efetivamente compara o milionário Christian Grey.

Anastasia e Bela, são duas mulheres jovens e inteligentes. Ambas vivem como se não fossem seduzidas pelo comum ou ordinário.

Christian dá para Anastasia os primeiros exemplares de obras de Hardy de presente, na tentativa de conquistá-la. A Fera dá a Bela toda a biblioteca de seu castelo. Nesse ponto notamos que o sentimento da Fera é universal, seu amor abrange tudo, já o amor de Grey o leva diretamente a uma história que fala basicamente de poder e submissão.

A Fera e Christian são dotados de grande poder e riqueza, ambos vivem rodeados por serviçais e são vítimas de incidentes infelizes na infância.

As mocinhas nas duas produções cruzaram acidentalmente o caminho de suas feras. Anastasia no lugar da amiga que ficou doente e Bela no lugar de seu pai. Assumiram o papel de outros por amor.

A Fera tem Bela como prisioneira. Christian quer aprisionar Anastasia com seus contratos e presentes, assim como fez com outras mulheres anteriormente.

No filme da Disney, a Fera tenta controlar seu mau gênio e seu temperamento assustador. Christian promete fazer o mesmo quando sente que Anastasia pode deixá-lo.

A Fera convida Bela para jantar, mas não consegue se adequar aos modos humanos durante a refeição. Bela em determinado ponto dispensa então os talheres para compartilhar com ele da mesma forma de se alimentar. Anastasia também. Abandona suas diretrizes e passa a aceitar os jogos sexuais de Christian. As duas conseguem aceitar certas situações por amor, mas essas situações não podem ser vistas como padrões a serem seguidos.

Christian parece ser onipresente. Consegue acessar contas bancárias, tudo sobre a vida de todos, a localização da sua amada apenas dando apenas um telefonema. A Fera também tem um espelho mágico que o permite ver tudo o que desejar.

A figura da bruxa, que aparece na história da Bela e da Fera como uma aldeã que vive a pedir dinheiro pelas ruas, pode ser vista em “Cinquenta Tons” como a personagem Elena Lincoln. No entanto Elena nunca quis dar uma lição em Christian, mas sim ensiná-lo a camuflar sua fera. A bruxa de “A Bela e a Fera” não quer que Adam, a Fera, continue a ser mau, por isso lança sua maldição. Ela inclusive o liberta quando entende que ele finalmente aprendeu a importância do amor, da empatia, do respeito e humildade. Elena Lincoln não faz o mesmo. No caso de Christian ela parece querer que ele permaneça fera e não enxerga que possa ser diferente.

Em determinado ponto a Fera liberta Bela, pois ninguém pode ser feliz aprisionado. Grey também aceita racionalmente (não emocionalmente) que o amor é liberdade e abre mão de seus conturbados contratos sentimentais. Contudo, ele tem dificuldade em deixar Anastasia andar com as próprias pernas e a monitora constantemente.

Eu diria que Christian é uma fera sedutora. Anastasia ama o homem que ela acredita existir dentro da fera. Aquele que toca lindas canções ao piano de madrugada. Ela o vê bonito, mas durante todo o filme é possível perceber que há nele muito de uma energia vil e brutal.

No final do clássico da Disney, uma vez estando a Fera morta, o homem bom por baixo dela finalmente volta à vida. No caso dos “Cinquenta Tons” fica-nos a indagação se o amor de Anastasia é realmente capaz de transmutar a fera que há em Christian até que ela desapareça por completo. E se ela desaparecer, o que sobrará ali?

Se existir um homem bom por baixo de uma temerosa fera, talvez o amor realmente possa tudo, como foi em “A Bela e a Fera”. Mas se existir apenas a fera, o amor não fará milagres e nesse ponto, estaremos já falando de algum outro gênero de filme bem longe do romance.

Essa sutil diferença é muito importante, pois para que o bom seja revelado, ele precisa efetivamente existir. No caso de Christian, acredito que nada apagará a fera que há nele. Apesar do enredo da trilogia nos contar o contrário.

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Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.

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