Meu marido é dono da empresa e trabalha nela

O despertador não toca e Elvira acorda atrasada. Precisa chamar os três filhos, fazer o café da manhã e encaminha-los à escola. Enquanto corre para dar conta de tudo, seu marido dorme. Assim começa a minissérie “Mytho”, produção francesa disponível na Netflix.

Na trama, Elvira (Marina Hands) é uma boa mãe e uma esposa dedicada, porém se sente sobrecarregada e invisível para sua família. Certo dia, meio sem querer, ela inventa uma mentira para ganhar a atenção daqueles que tanto ama. Após um exame de mamografia, resolve dizer que está com câncer. A partir daí, acompanhamos a jornada da protagonista para sustentar sua mentira, em troca do amor dos 3 filhos e da atenção do marido ausente.

É claro que a mentira de Elvira não é saudável nem tampouco honesta – o título da série é derivado da palavra “Mitomania”, uma psicopatologia definida como “o hábito de mentir ou fantasiar desenfreadamente ou a tendência a narrar extraordinárias aventuras imaginárias como sendo verdadeiras”. Porém, a série traz uma reflexão interessante, em que uma pessoa precisa chegar ao cúmulo de inventar uma doença grave para se sentir notada.

No TikTok viralizou uma trend divertida chamada: “meu namorado é dono da empresa e trabalha nela” ou, ao contrário: “meu namorado é dono da empresa mas não trabalha nela”. Na trend, várias meninas postam prints de seus stories do Instagram e as reações de seus seguidores. No primeiro caso, o namorado está presente em todas as visualizações, interage com likes, emojis e comentários. No segundo caso, o namorado não visualiza os stories e, se visualiza, não interage. Os seguidores, ao contrário, interagem. Mas o “dono da empresa”, não. A brincadeira parece ser uma forma de chamar a atenção do dono da empresa, do tipo: olha, se você não quer trabalhar, vai perder o cargo!

O fato é que, brincadeiras à parte, faz sentido. Amor dá trabalho. Amor é construção e parceria. Amor é consideração, apoio e companheirismo. Amor é estar presente, não somente na alegria e tristeza, mas nas horas comuns e corriqueiras, normais, cotidianas, habituais e até banais. Alegria e tristeza, saúde e doença são picos de uma trajetória cheia de altos e baixos chamada Vida. Porém, entre a saúde e a doença, há o cansaço. Entre a alegria e a tristeza, há a normalidade e o tédio. E a gente precisa estar junto nessas horas também, mesmo que seja só mais um dia de calor, só mais um momento de maçante estabilidade, só uma sequência de instantes com ares de normalidade.

No começo é sempre aquela euforia. Passado algum tempo, porém, tudo ganha um ar de normalidade que aniquila o encantamento. Apoiar, torcer, visualizar, aplaudir e comemorar são gestos generosos de quem investe no relacionamento, mesmo que ele tenha chegado naquela fase em que nada surpreende mais, tudo é costumeiro e rotineiro. Mesmo sendo donos da empresa, precisamos continuar trabalhando nela.

“Se todo mundo viu porque você não tá vendo, todo esse esforço que eu tô fazendo, pra fazer você se sentir orgulhoso, pra fazer você se apaixonar de novo…” – Marília Mendonça cantaria, ao lado de Maiara e Maraisa, numa noite estrelada. Talvez, arrisco dizer, porque alguém que ela queria, não prestava atenção ao que ela fazia do jeito que ela desejava. A verdade é que o ser humano é bicho confuso. Estende um tapete vermelho à novidade e, quando ela se torna comum, procura outro motivo para festejar.

Preciso dizer que tenho sorte. Meu marido é dono da empresa e trabalha nela. É o primeiro leitor de meus textos, visualiza e interage com meus stories, assiste aos meus vídeos, lê todos os meus livros, está sempre disponível nos meus eventos. Torce por mim e está presente não somente na alegria e tristeza, saúde ou doença, mas no dia a dia em que não há rímel nos meus olhos nem batom na minha boca.

Domingos podem ter sabor de pizza marguerita e mesmo assim serem fantásticos. O que quero dizer é que Deus nos poupe de ter uma doença grave (ou de fingir ter uma, como na série Mytho) para sermos notados por aqueles que amamos. Deus nos poupe de sermos forçados a fazer esforços sobre-humanos (como na letra da música da Marília) para tentar chamar a atenção de quem nos interessa. Que sejamos notados e amados na nossa normalidade, naquilo que conseguimos ser e fazer. Amém.



LIVRO NOVO



Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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