Uma hora dessas a gente vai ter que se dar esse amor que tanto procura

Eu pegava dinheiro escondido da carteira do meu pai para comprar doce numa vendinha que tinha no térreo no prédio onde eu morava, que no caso era o Edifício Copan, onde meu pai era zelador.

Eu podia pedir o dinheiro? Podia! Ele ia me dar? Não sei… Mas isso não é desculpa para afanar graninhas da carteira do pai, né? Ou é?

O fato é que eu me lembro exatamente do doce em questão, era uma bala mastigável que atendia pelo nome de Mentella. Não existe mais. E eu era viciada nesse troço; comprava logo uns três tubos e devorava… escondido, claro! Afinal como é que eu ia explicar a origem das balinhas?

Doce era uma coisa proibida na minha casa. Minha mãe era radical com relação a doces. Sobremesa lá em casa era fruta, no máximo uma banana assada ou uma gelatina que minha mãe produzia de forma caseira, usando folhas de gelatina e suco de fruta natural. Pois é…

Eu tinha uma amiga, chamada Bárbara, cuja mãe era super jovem e “desquitada”, imagine só que sensação. Eu morria de inveja de Bárbara. Na minha fantasia infantil uma mãe que usava minissaia e botas, com certeza não ia “obrigar” a filha a surrupiar trocados na carteira do pai para comprar bala, certo?

Uma vez fui fazer trabalho de escola na casa de Bárbara. Nossa! Que máximo! No almoço, comemos macarrão instantâneo e coxinha (FRITA!!!!!). No lanche tinha rocambole Pullman com Coca-Cola, em plena terça-feira! A casa de Bárbara era uma espécie de paraíso para mim.

Mas, voltando às balinhas compradas com dinheiro escuso… O fato é que, junto com as balas, devoradas compulsivamente, eu engolia também um bom punhado de culpa. De verdade, à época eu não percebia, mas a culpa acrescentava às balinhas mastigáveis um perturbador sabor de adrenalina e uma boa dose de um falso poder.

No íntimo tudo era parte de um ritual: driblar as regras excessivamente rígidas alimentares estabelecidas; subtrair valores daquele que eu julgava fraco porque não era ele quem estabelecia as regras, mas também não tinha peito para questioná-las; e, de quebra, me lambuzar de substâncias ilegais travestidas de inocentes balinhas de menta.

Alguns anos mais tarde, quando fui fazer terapia pela primeira vez, confessei meu grave delito à terapeuta e, confesso, despejei ali anos e anos de culpas engolidas às pressas com muito, muito açúcar para disfarçar o gosto amargo de sentir que estava sempre fazendo “alguma coisa errada”.

Cheguei a aventar junto à psicóloga uma suspeita de que aquilo fosse alguma manifestação cleptomaníaca. Ocorre é que a moça, talvez por falta de preparo ou sensibilidade, apenas negou a suspeita, dizendo que havia sido um “fato isolado” e que eu não deveria ocupar a minha cabecinha com aquilo.

Bem… não adiantou nada. Eu passei noventa por cento da minha adolescência escondendo quem eu era dos meus pais. Vesti com maestria a capa de melhor aluna da classe, estudiosa e tímida e por baixo dos panos, namorei muito, cabulei muita aula no Ensino Médio, fumei escondido, bebia demais. Apenas fui trocando as balinhas por outras coisas.

As balinhas, eram na verdade uma tentativa tola e infantil de aplacar uma enorme solidão que comia meu peito por dentro. Uma solidão que foi fruto de uma educação que era dura demais, perfeita demais, silenciosa demais.

Comer compulsivamente é apenas um jeito de aplacar uma fome que não sara com comida, uma fome que arde e castiga a alma porque é fome de amor. Então, estou querendo dizer que meus pais não me amavam? Sim. E não. Amavam, lá do jeito deles, do jeito que eram capazes de amar. E eu já passei pela fase da negação, da conformação, do sofrimento e da revolta.

Depois de muita terapia, muito ansiolítico, muita meditação, muita oração, muita entrega desastrosa, muitas formas diferentes de amar, eu finalmente sou capaz de perdoar. Perdoo a eles por nunca terem me enxergado claramente. Perdoo a mim por ter me maltratado tanto, por ter mentido tanto, por ter roubado tanta vida de mim e também de gente que me amou de verdade.

Afinal, uma hora dessas a gente tem que aprender a se dar esse amor que tanto procura, porque enquanto isso não acontece a gente vai só trocando as carências de lugar. E isso, ahhhhh isso dói por demais!



LIVRO NOVO



"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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