A esta altura estava sozinha. Ninguém podia ouvi-la tão bem quanto ela mesma. Por dentro o som que se ouvia zunia gelado, cortando, se arrastando como que fossem folhas de outono rangendo-se enquanto se misturavam. Este era o som da solidão ouvido do outro lado, escutado por dentro. Abriu com um abridor uma lata, devagarinho, porque não havia muito mais o que fazer na casa.

Estava sozinha. Não que estivesse realmente desprevenida para estar. Havia ensaiado aquele passo solo nas noites em que pegou no sono no sofá e ninguém veio lhe buscar, em suas idas ao parque disfarçadas de paz, havia ensaiado com a pizza de oito pedaços que se congelava por mais de uma semana, havia coreografado o estar sozinha, mas ninguém está preparado para se enxergar sozinho. Este era um momento daqueles em que a gente não se basta. Abriu também a curva da lata.

Mas quando é que você volta mesmo? – perguntou Cristina, em sua impressão constante de que tamanha sensação de estar sozinha só poderia significar que ele veio, beijou-a durante a noite e partiu nas pontas dos dedos. Preferia pensar assim. Que aquela solidão era de quem esperava retorno, de quem sentia falta, não era aquela espera boa da vinda do novo. Aquela saudade era antiga. Cristina esperava a volta de alguém que nunca veio, nunca foi. Nunca foi seu.

Metade da tampa da lata mostrava os dentinhos do corte forçado. Pensava sempre que, sozinhos, ninguém poderia provar que nós existimos mesmo, somos um livro que não teve lido nem sua contracapa. Pensou que a gente é altura, peso, distância, documento, sequência, e isso não é história direito. Amados somos palavra, sozinhos somos número. Primos, indivisíveis, insolúveis. Cristina pensava demais.

Ao terminar de abri-la, afastou a tampa apática e foi golpeada. Dentro da lata não havia ervilhas como as prometidas na imagem, havia na verdade uma enorme e farta variedade de grãozinhos amarelos de milho verde. Não se conteve: riu alto, gargalhava inocente, até dar dor de barriga. Foi ali que esqueceu que vivia sozinha e lembrou-se que era ótima companhia para si mesma.

Diego Engenho Novo

Escritor, publicitário e filho da dona Betânia. Criador do blog Palavra Crônica, vive em São Paulo de onde escreve sobre relacionamentos e cotidiano.

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