Acordar para si é retomar a beleza do avesso

Uma das coisas que eu mais gosto é estar em lugares e com pessoas onde não preciso dizer nada e, nem por isso, a naturalidade da relação deixa de estar presente.

De vez em quando torno-me serva voluntária da introspecção que toma conta de mim. Transformo-me em morada de silêncio externo enquanto o mundo do avesso se reorganiza e assume o controle do que me é estrutural.

Quando a nossa verdade não é invalidada pelo excesso de estímulos, olhamos ao redor com os olhos de quem realmente vê, somos a energia sentida do local onde estamos e entendemos o real valor de quem nos cerca. Para os minutos de silêncio preservados somam-se horas do respeito emocional que nos guia.

É muito fácil nos levarmos pelo ritmo sedutor de tudo o que acontece ao redor. Podemos ser bem sucedidos para o que a sociedade espera de nós, podemos ter algum recurso financeiro, bens, empregados, convites sociais e até reconhecimento público. Mas, quem somos nós quando nos sentamos no sofá e, antes daquele filme ou última mensagem do voraz celular, nos vemos sós e temos o ruído simbólico de nossos corações alimentando o nosso viver. Ele bate e bate novamente. Ele nos lembra que o ritmo continua, que devemos ir adiante, e de que pode existir algo além do que estamos vendo. Tum Tum: veja. Tum Tum: escute. Tum Tum: sinta. Tum Tum: acorde para vida, você está viva.

E esse “Tum Tum” que me inquieta viajou comigo para o Peru. Foram comigo, carregadas na mala em algum cantinho apertado junto as roupas organizadas rapidamente, expectativas bastante singelas. Aquela viagem era um convite aceito meio no susto, uma oportunidade de estar junto com uma amada amiga com quem trabalhei por muitos anos e que, por mudança de trabalho, eu já não tinha há muito tempo na minha convivência diária.

E lá fomos nós. Estávamos eu, a Ana Carolina- minha sobrinha querida que sempre arrasto por aí- a mala com as singelas espectativas, e a pessoa que tenho sido nos últimos meses: perfil mais objetivo, mais calada, ainda focada em coisas do trabalho e com a cabeça cheia de atividades recentes que haviam me deixado tensa e pensativa.

Em uma das primeiras noites, no hotel, a minha amiga, do nada, me pergunta se estava acontecendo algo, se eu estava com algum problema com ela, chateada ou algo assim. Eu, sem nem ter ideia do que se tratava, respondi sinceramente que não. Mas tinha algo sim, claro que tinha, eu estava diferente, e ela, como me conhece na essência, percebeu a mudança.

Será que os últimos anos trabalhando basicamente online tinham me tornado alguém menos sociável? Será que as decepções amorosas que me afastaram de novas relações tinham apagado algo do meu encanto? Será que eu já não era mais tão espirituosa, engraçada e mentalmente rápida como sempre tinha sido conhecida? Sim, algo tinha mudado e eu sabia porque a verdade, quando ouvida pelas palavras de quem nos ama, sempre ecoa. Tum Tum, minha amiga Maria Carolina estava certa.

Os dias e a viagem passaram de forma encantadora. Estar em cidades como Cusco e visitar locais como Machu Picchu e o Vale Sagrado dos Incas, nos toca e, mais uma vez, deixa claro que nossas expectativas podem estar aquém do que é mais importante.

Pensar e caminhar. Sentir e ouvir sem muito falar. Na maior parte do tempo apenas preocupada em respirar e olhar. Afinal, a altitude daquele lugar não é para qualquer um, mas estava eu lá, onde tinha que estar: quieta e revendo um pouco de tudo e muito do que era indispensável.

Caminhos inusitados são portais. O novo pode gerar medo, mas é na descoberta que também surge a admiração. As pessoas que conheci por lá imediatamente entraram como convidadas de honra do meu repertório emocional- e eu até já tinha uma dorzinha no meu coração ao saber que elas também não estariam mais comigo depois da viagem. Afinal, caminhos trilhados com pessoas queridas deixam rastros na alma, são pistas encantadas de que algo incrível aconteceu.

O povo peruano possui uma simplicidade no que ela carrega de mais belo: a magia de ser o que se é, algo que sabemos ser qualidade bem rara. É claro que eu entendo que, como em qualquer outro lugar do mundo há todo tipo de gente, mas estou falando do que parece predominar, da beleza genérica de um povo que galgou seus caminhos, sobreviveu a um império totalmente exploratório e que dizimou seus ancestrais, mas que mesmo assim nos olha e, mesmo que timidamente, sorri, pois possui doçura e gentileza.

Em cada passo, algo em mim dava abertura para a retomada da beleza do avesso e, por já não ser tão jovem, também sei bem da importância dessa beleza quando a estética externa já não é um dos pontos mais fortes. Caminhei também pensando sobre como o envelhecer nos molda para outra aceitação pessoal e social ligada a não ser mais tão atraente e desejável como fui em outras épocas. E não serei hipócrita, é claro que isso conta porque a opção por viver só, quando colocada em xeque, também retoma o olhar para fatos que estavam lá guardados sob o tapete como o desejar e ser desejável, poder rever uma decisão e, nessa altura, ainda achar alguém que pareça interessante e, se essa pessoa for encontrada, imaginar se os atributos que se tem a oferecer também são bons o suficiente para agradar ao outro. Ser mais velha coloca alguns bons empecilhos como pensar em encontrar alguém que interesse e não esteja comprometido quando, nessa idade, a maioria dos amigos mais próximos já está em relações duradoras e com filhos por aí. Tum Tum: não faço ideia se ainda sou capaz de embarcar numa dessas. Tum Tum: meu histórico de péssimas escolhas amorosas me condena.

O retorno para casa foi um pouco triste porque a jornada estava mais do que especial. Era cedo para voltar. Houve um sentimento de orfandade pela caminhada interrompida, pelas novas pessoas conhecidas e que eu queria desvendar melhor, pela cultura e o povo pelo qual me apaixonei e tão bem me acolheu. Tum Tum: um rompimento em plena paixão pode ser bastante traumático.

Mas a vida, que não se importa nada com meu dilema individual, ainda me preparava mais uma, voltei e meu cachorrinho e parceiro de jornada há 14 anos adoeceu, e foi grave, e eu tive que decidir, e optei por acompanhar sua eutanásia. Pronto, mais um luto profundo e sincero, mais um profundo repensar sobre como continuar sem suas patinhas pela casa e os suspiros cúmplices de sua companhia. Mas gente continua. Tum Tum: a gente tem que continuar.

Dizem que ninguém dorme romântico e acorda realista e, sabendo da impossibilidade da mudança radical, estou em aqui digerindo caminhada, amores, amigos e lutos. Tum Tum: estou triste com a reorganização emocional, mas feliz com a possibilidade de mudanças.

E que venham outras viagens, e que fiquem as pessoas amadas, mesmo que apenas em nossas afetivas lembranças, e que surjam mais dilemas. Que os lutos sejam a prova do amor verdadeiro. E que um passo sempre venha para anteceder o próximo, e nos leve além, e nos remeta a quem realmente importa e nos acolha num abraço sincero da Terra que nos acolhe e que, a cada dia, nos oferece um novo amanhã cheio de oportunidades e renascimentos. Tum Tum: estamos vivos.

Imagem de capa: Pikoso.kz, Shutterstock

Meus agradecimentos às agências Adventure Peru Brasil e Machu Picchu Best Trips.



LIVRO NOVO



JOSIE CONTI é psicóloga com enfoque em psicoterapia online, idealizadora, administradora e responsável editorial do site CONTI outra e de suas redes sociais. Sua empresa ainda faz a gestão de sites como A Soma de Todos os Afetos e Psicologias do Brasil. Contato para Atendimento Psicoterápico Online com Josie Conti pelo WhatsApp: (55) 19 9 9950 6332

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