Dia desses, em busca de uma leitura amena, baixei “Nu, de botas”, do Antonio Prata no celular. Foi tiro certo. O livro é leve e engraçado, e para aqueles que, como o autor, viveram a infância nos anos 80, um prato cheio daquilo que vivenciamos e experimentamos num tempo em que “não se usava cinto de segurança nem protetor solar, pessoas não andavam por aí com garrafinhas d’água, como se fosse o elixir da vida eterna, fazíamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era apenas uma vaga ameaça de gente paranoica, como a CIA ou a KGB.”

Impossível não se identificar com as lembranças e infortúnios típicos da infância, fase em que tudo ganha dimensões gigantescas diante da inabilidade de lidar com a realidade.

Toda infância é carregada de riqueza e dor. Uma dor sem nome, que revela todo o desamparo e fragilidade de uma época sem defesas consolidadas. Minha memória não é tão boa quanto a de Antonio Prata, mas fui uma menina de diários. Aos oito anos, morando na casa de minha avó, numa rua onde todos os moradores eram meninos, além de meus dois irmãos e três primos, todos homens, descobri que podia me refugiar escrevendo. Foi então que surgiu meu primeiro diário, infelizmente extraviado. Mas depois deste, vieram outros, e hoje, meu “acervo” conta com historias desde o longínquo ano de 1984, retratadas com riqueza de detalhes e deturpações fantásticas da realidade.

Meu pai é médico patologista, necropsista e professor. Quando éramos crianças, não era raro meus irmãos e eu passearmos no hospital ou faculdade de medicina. Porém, não visitávamos os doentes, e sim os mortos. O cheiro de formol era familiar, e a visão dos corpos nus, boiando na substância, corriqueira. Também gostávamos de ver os bebês que viviam nos vidros, frutos de abortos, em geral com anomalias. E não nos assustava abrir os latões e ali encontrarmos pernas ou outros membros amputados. Digo isso não para chocar, mas para mostrar que aquilo que é natural numa família, não o é em outra, de modo que só quando ingressei na faculdade de odontologia, e fui estudar anatomia, é que descobri, diante do assombro de meus colegas (que tremiam ao ver uma peça anatômica) que aquilo não era comum, muito menos normal pra maioria. Só hoje, com mais vivência, percebo a riqueza de ter crescido num ambiente assim.

Muitas páginas dos meus diários foram escritas no departamento de patologia do hospital. Mas não falavam de doenças, mortos, ou cheiro de formol. Como eu disse, aquele era meu mundo, e por isso não me afligia. Meus pais tratavam disso com naturalidade e assim, normal pra gente também. Porém, outros assuntos eram colocados na pauta do dia com emoção _ boa ou ruim _ e eu, ainda muito nova pra saber lidar com as emoções dos adultos, me via angustiada e aflita de modo exagerado perante aquilo que eu considerava “uma grande catástrofe” na vida de nossa família.

Uma tarde por exemplo, me vi num dilema existencial muito grande, porque era Sexta Feira da Paixão e no andar de baixo, mais precisamente na cozinha, meu pai se fartava de melancia sem culpa ou arrependimento. Os gomos eram partidos e engolidos com vontade, o caldo vermelho e suculento escorrendo pelos lábios, nos fazendo salivar à distância imaginando seu paladar, seu prazer, sua liberdade. Enquanto minha mãe nos ensinava o catequismo e orientava para que fizéssemos sacrifícios, aquele homem ousava comer melancia e ser feliz na Sexta Feira da Paixão!!!! Por incrível que pareça, aos dez anos de idade, aquilo pra mim era o sinal dos tempos; a emoção de minha mãe tomava conta de mim com intensidade cem vezes maior que a real, e assim eu não sabia mais o que esperar daquele homem que ousava contrariar as leis de Deus e de mamãe. É claro que mais tarde aprendi a enxergar os dois lados, sem dramatizar ou julgar.

No ano seguinte, passeando pelo Playcenter, meu pai levou meus dois irmãos ao Colossus, uma montanha russa gigantesca para os padrões da época, com looping e descida radical. Eu não sabia, mas gostava de adrenalina. Porém, como minha mãe morria de medo e eu não queria apavorá-la sendo a quarta pessoa da nossa família a despencar lá de cima, morrendo junto com meu pai e os dois irmãos, mantinha-me firme a seu lado ouvindo-a murmurar “que horror…” e, em silêncio, murmurava solidária “que absurdo…” até que os três retornavam _ sorriso no rosto, audaciosos e vencedores _ para então voltarmos a respirar normalmente. Anos mais tarde, cheia de opinião e coragem, saltei de paraquedas enquanto minha mãe assitia_ apavorada_ em terra. Foi meu jeito de descobrir quem sou e do que gosto realmente.

É claro que haviam assuntos sérios também. Como o dilema de ter que explicar às minhas amigas que número de ovo de Páscoa eu havia ganhado, quando na verdade não havia ovo algum _ “Querida Kitty (Inspirada por Anne Frank, também apelidava o diário de “Kitty”)
Como foi de Páscoa? Eu passei muito bem. Nada de ovo de Páscoa. Mamãe não gosta de nos dar ovos, diz que Páscoa não tem nada a ver com chocolate e sim com a ressurreição de Jesus. Eu bem que queria, ás vezes fico até com vergonha das minhas amigas quando perguntam o número do ovo que ganhei, mamãe bem que podia repensar isso…”; ou as incontáveis queixas contra meus irmãos, dois meninos no auge da pré adolescência cujo maior prazer era infernizar a vida da irmã mais velha.

Além de hilários, meus diários são provas concretas do amadurecimento ao longo dos anos, mas não deixo de ter compaixão pela menina responsável_ demais_ que fui. Hoje, mais ciente de minhas certezas, diria para essa adolescente simplesmente relaxar, viver a própria idade com leveza, não assumir tanta perfeição somente pelo desejo de agradar e ser amada.

Mas também aprendo muito com ela. Ao ler a apresentação do diário de 1986, me comovi com os sonhos _ esquecidos_ da menina de 11 anos: “Meu maior sonho é ser uma atriz um dia, conhecer a Disneylândia, e principalmente continuar feliz. Minha comida predileta é sorvete de morango. Nunca viajei de avião, mas acho que ainda viajarei…”

Voltando do almoço, caminhando pelos corredores do Centro de Saúde onde trabalho, me deparo com a dor estampada em cada olhar abatido que me segue com alguma esperança. Os sonhos da menina (relidos agora há pouco para escrever esse post) ecoam no meu pensamento e engulo a seco_ quanta coisa mudou de lá pra cá…
Finalmente recordo Eliane Brum e o prefácio do livro “A menina quebrada”:
“Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome…”

Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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  • Nossa, se todos nós tivéssemos a sorte de termos nossas vidas transcritas em papel...como nos reconstruiria a cada página relida, não sofreríamos pelos desejos não concretizados,mas nos alegraríamos com o poder de ter um dia , simplesmente, desejado!!!

  • Que bom, Fabíola,você não ter destruido seus diários. Tive alguns, todos rasgados quando me vi adulta, lá pelos 17/18 anos! Hoje, não sei o que escrevi. Vagamente, sei que crianças somos muito sensíveis e sofremos muito mais que o necessário. Sobretudo, se somos precoces, como vejo que você é. Ótimo que você pega tudo e forma um caldo até feliz sem rancor nem pendências.

  • nunca gostei de diários por duas razões, até tentei: se era pra ser segredo não devia ser registrado, e a outra é que sempre achei banal meus sentimentos do passado. não sei se acumulo excessos ou vazios.

  • Tive a alegria de conhecer seu blog hoje. Amei a forma que escreve, como tem a facilidade de colocar as palavras, me identifico com sua escrita. Parabéns, e obrigada por compartilhar seus pensamentos, e pode ter certeza que está enriquecendo pessoas.

  • Já faz um tempinho que acompanho seu blog. É super gostoso quando, como agora, leio algo que parece ter sido escrito por mim. Também tive diário desde meus 8 anos e não sei exatamente quando, mas próximo aos 23 anos parei de escrever. Agora, mãe de uma menina de 5 anos, decidi voltar a escrever... não um blog, pois não me sinto capacitada para tanto, mas um diário, onde espero escrever minhas novas e não tão novas questões... Parabéns.
    Mônica El Kik

  • Olá Mônica! Obrigada pela visita e por vir aqui comentar. Volte sim a escrever, acho que ajuda a gente a se conhecer melhor, a desabafar, a entender as situações vividas. Pra mim funciona assim... obrigada pelo carinho de me acompanhar! Bjs!!!

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