Uma hora a gente apende a conviver com a dor

Eu tenho uma camisa já faz quase uns dez anos, ela não tá nada surrada, é bonitinha, tem um caimento incrível e eu gosto muito dela. Quem vê não diz que ela é velhinha e já foi testemunha de muitas histórias. No braço direito, aqui perto do ombro ela tem um buraquinho; Essa é mais uma das suas histórias. Já faz um bom tempo eu saia de uma balada e vi uma pessoa sendo espancada, eram dois batendo nele já jogado no chão, sem reação. Sem pensar muito, munido apenas de coragem, fui lá; Um dos caras ergueu um pedaço de ferro, desviei com um braço, com o outro acertei-lhe o rosto, ele derrubou aquilo que fazia de arma e correu, neste meio tempo o outro rapaz me acertou o braço com uma faca. Ainda acelerado, ligamos para a emergência e cuidamos de resgatar o individuo que estava ali desacordado. Só depois, quando cheguei em casa percebi a camisa furada, mas ele não havia me acertado. Salvamos uma vida eu presumo.

Eu ainda a uso mesmo depois de tantos anos, olhar pra aquele buraquinho ali me faz lembrar que num ato nenhum pouco racional evitei uma situação mais grave. Se alguém me pergunta, por vezes eu pareço apenas um bom contador de histórias, não tenho nenhum porte de herói. A camisa segue ali, sustenta uma cor já pálida, mas sabemos o quanto fomos heroicos. Eu não deixei ela de lado por conta de um pequeno furo, mas também não consertei. Esta ali como uma ferida aberta tal qual todas as outras que carrego no peito. São mágoas, são ausências, negligências, são fraturas expostas em quem já aprendeu a conviver com as despedidas.

As vezes considero que embora minha saúde mental esteja em desordem, as paixões e despedidas são o principal combustível para o escritor que busca inspiração naquilo que absorve empiricamente, naquilo que vive, naquilo que sente. O fato é que é inútil querer se curar, sobretudo com pressa. É irrelevante buscar esquecer, apagar, deletar. É preciso aprender que você não precisa jogar uma camisa fora por conta de um detalhe, é preciso aprender a sorrir mesmo com as feridas expostas e que volta e meia você tenha que explica-las a alguém. Nossas feridas são testemunhas de nossa coragem e heroísmo pra lutar por amor. Não é preciso enfrentar a dor, mas, conviver com ela. São nossas cicatrizes que nos tornam únicos.
@giovanegalvan

Imagem de capa: Mangostar, Shutterstock



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Giovane Galvan é taurino, apaixonado e constantemente acompanhado pela saudade. Jornalista, designer, produtor e redator, escreve por paixão. Detesta futebol e cozinha muito bem. Suas observações cotidianas são dramáticas e carregadas de poesia. Gosta do nascer e do pôr do sol, da noite, mesas de bar e do cheiro das mulheres pra quem geralmente escreve. Viciado em arrancar sorrisos, prefere explicar a vida através de uma ótica metafórica aliando os tropeços diários a ensinamentos empíricos com a mesma verdade que vivencia. Intenso, sarcástico e desengonçado, diz que tem alma de artista. Acredita que bons escritos assim como a boa comida, servem de abraço, de viagem pelo tempo e de acalento em qualquer circunstância.

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