Lembranças devastadas pela cruel varredura do Alzheimer

Imagem de capa: iordani, Shutterstock

Onde fica o banheiro? A pergunta é comum. Todos nós já a fizemos incontáveis vezes por estarmos num ambiente desconhecido. Diante da necessidade fisiológica iminente, é possível que fiquemos aflitos diante da possibilidade de não haver um banheiro disponível, de não dar tempo. Onde fica o banheiro? O questionamento inocentemente comum pode ser corriqueiro. A menos que esteja sendo repetido pela sexta vez em dez minutos. A menos que esteja sendo repetido apenas dentro da cabeça, acreditando-se que foi pronunciado. Onde fica o banheiro? Sem obter a resposta para a pergunta que se esqueceu de proferir, ocorre o inevitável. Há uma poça de urina sob os pés, a roupa está molhada, o coração disparado, a cabeça confusa. Vergonha, medo, desalento. Onde fica o banheiro? Além da incontinência urinária, o portador da Doença de Alzheimer sofre da enorme dor de não controlar suas lembranças. As memórias são mantidas ou descartadas num caos aleatório que dança sobre um terreno pantanoso e escuro. As lembranças são tragadas pela areia movediça do esquecimento.

No dia 25 de novembro de 1901, August D., uma mulher de 51 anos, deu entrada no Hospital Municipal de Lunáticos e Epiléticos de Frankfurt. Seu marido a descreveu como uma mulher tranquila, educada e até um pouco tímida. No entanto, estava muito assustado com seu comportamento subitamente alterado. Seis meses antes dessa data, August D. teve uma crise de ciúmes, agrediu fisicamente seu marido e quebrou muitos objetos dentro de casa. Depois disso, caiu num sono agitado e profundo. Acordou bastante confusa sobre onde estava, queria saber por que estava tudo bagunçado e trocou várias vezes de roupa, até colocar um vestido de festa para ir à casa de seus pais. O marido de August D. teve muito trabalho para convencê-la de que seus pais já haviam falecido há mais de dez anos. A partir desse incidente, August D. foi apresentando lapsos de memória cada vez mais frequentes e intensos. Dada a gravidade do estado da paciente, o diretor do hospital, Dr. Alois Alzheimer, foi chamado para atender pessoalmente o casal.

Extremamente estudioso; criterioso e detalhista, o Dr. Alzheimer tinha a habilidade de descrever com riqueza de detalhes suas descobertas microscópicas. Durante as manhãs, ele atendia seus pacientes, dedicando-se com esmerada atenção a colher o maior número possível de informações acerca de suas rotinas e queixas. As tardes eram ocupadas por exaustivos estudos no laboratório, onde Alzheimer analisava lâminas de tecido cerebral obtido em necropsias. Os estudos eram feitos em parceria com o Dr. Nissl, mais criativo e inquieto, que completava a atitude disciplinada e o alto poder dedutivo de Alzheimer. Juntos, eles protagonizaram um importante projeto de mapeamento das doenças do sistema nervoso conhecidas na época.

O caso de August D. foi acompanhado com admirável interesse por Alzheimer até 1903, quando se mudou para Heidelberg para trabalhar com o Dr. Emil Kraepelin (fundador da psiquiatria moderna), na Clínica Psiquiátrica Real, em Munique, hoje Instituto Max-Planck de Psiquiatria.

Em 1906, a paciente faleceu, vítima de complicações advindas da doença. Um colaborador de pesquisa, Dr. Sioli, enviou o cérebro e o prontuário de August D. para que Alzheimer pudesse estudá-lo. O caso foi apresentado no 37º Encontro de Psiquiatras do Sudoeste da Alemanha em novembro do mesmo ano, em Tübingen. A plateia recebeu os achados com frieza e cautela.

Em 1912, Alzheimer aceitou o convite do rei da Prússia Guilherme II para dirigir a Clínica de Psiquiatria e Neurologia da Universidade Silesiana Friedrich-Wilhelm, em Wroclaw (hoje Breslau, Polônia). Na viagem de trem contraiu uma grave amidalite, que evoluiu para artrite reumatóide e problemas cardíacos e renais. Nunca mais recuperou a saúde e passou os anos seguintes na cama, até morrer em 1915, aos 51 anos.

As duas guerras mundiais, das quais a Alemanha saiu derrotada, contribuíram para que a descoberta de Alzheimer passasse despercebida até a década de 60, quando a maior expectativa de vida da população fez aumentar o número de casos da doença. Houve controvérsia entre médicos e pesquisadores. Para muitos deles, Alzheimer cometera equívocos, e as lesões descritas no início do século XX correspondiam a outras doenças já conhecidas, como a demência vascular.

A polêmica foi realmente resolvida só na década de 90, graças ao notável trabalho investigativo do Neuropatologista Manuel Graeber, do Instituto Max-Planck de Neurobiologia. Entre 1992 e 1997 ele encontrou as preparações histológicas do cérebro de August D. até então esquecidas nos porões da Universidade de Munique. Ao todo são mais de 400 lâminas em ótimo estado de conservação, além de outros documentos que descrevem a história clínica desses pacientes. O material é base de pesquisa para muitas publicações médicas e artigos discutidos em Congressos de Psiquiatria por todo o mundo. A Doença de Alzheimer é hoje a forma mais comum de demência e um dos distúrbios mentais que mais concentram esforços de pesquisa, além da preocupação de profissionais da saúde, das famílias e da mídia. Há, atualmente, no mercado editorial, inúmeras obras científicas ou de ficção que trazem o Alzheimer como tema central.

Por meio da leitura do romance “Quem sou eu, afinal?“, do escritor Ricardo Valverde, somos convidados a viajar numa narrativa fluida, dramática e envolvente, cujo cerne é o drama enfrentado por Daniel Lebzinsky e os demais personagens da trama, que aos poucos vai sendo tecida e entrelaçada com maestria e delicado respeito pelo autor. Daniel Lebzinski é um senhor envolto em tristeza e amargura que, após doar seu sêmen pela última vez, tenta retornar a sua casa, mas é surpreendido pelo esquecimento. O que parecia ser apenas um fato isolado transforma-se em uma série de eventos repetitivos. Com o auxílio de Judith Stelar, enfermeira e amiga de longa data, o doador de sêmen é diagnosticado com o Mal de Alzheimer e passa a lutar contra essa terrível doença. Benjamim, um jovem doce e sonhador, está prestes a descobrir o amor pela primeira vez com Laila, sua namorada, quando se depara com um antigo exame, que irá mudar a trajetória de toda a sua vida. Ao descobrir que seu pai é estéril, o jovem parte em busca de sua verdadeira origem. Elad Raviv, um marido distante e ausente, se vê frente a frente com os mais profundos abismos de seu coração e parte em uma árdua jornada à procura de uma razão para viver. O que essas três histórias podem ter em comum? Quem são eles, afinal? Por qual razão a vida os colocou no mesmo caminho? A leitura deste romance, editado e distribuído pela Editora Novo Século é uma maneira educativa de entrar em contato com a realidade tão sombria dos cuidadores, familiares e portadores de Alzheimer.

Os pacientes, após terem os primeiros sinais da doença, que em geral são “brancos” de memória envolvendo atribuições prosaicas cotidianas, percebem-se privados do direito de manter uma rotina de vida laboral, social e afetiva. Tornam-se fragilizados do ponto de vista orgânico e emocional. E, com os desdobramentos da doença, passam a depender dos cuidados de familiares ou profissionais de saúde, até para cuidados pessoais, de higiene e alimentação.

Aqueles que se dispõem a cuidar dos portadores de Alzheimer também têm suas rotinas completamente alteradas, dadas as necessidades de cuidados cada vez maiores e da forte carga emocional. Toda a família é afetada pelas consequências da progressão da demência. A doença é caracterizada por um crescente e irreversível declínio em certas funções intelectuais: memória, orientação no tempo e no espaço, pensamento abstrato, aprendizado, incapacidade de realizar cálculos simples, distúrbios da linguagem, da comunicação e da capacidade de realizar as tarefas cotidianas. Outros sintomas incluem mudança da personalidade e da capacidade de julgamento.

O diagnóstico de Alzheimer continua sendo clínico, mas a diferença verificada desde o início da atual década (Dr. Alzheimer verificou o acúmulo da proteína beta-amiloide ao estudar o cérebro de August D.), foi a constatação de que marcadores biológicos podem auxiliar a tornar o diagnóstico mais preciso. Os marcadores biológicos que passam a fazer parte da investigação clínica são o beta-amiloide e a proteína fosfo-tau. A proteína beta-amiloide é acumulada nas placas senis, um dos marcos patológicos da doença. Essa proteína é produzida normalmente no cérebro e há evidências de que quantidades muito pequenas dela são necessárias para manter os neurônios viáveis. O problema na Doença de Alzheimer é que sua produção aumenta muito, levando à alteração nas sinapses, o primeiro passo para a série de eventos que leva à perda de neurônios e aos sintomas da doença.

Os avanços da medicina conferem aos seres humanos uma expectativa de vida cada vez maior. Todos querem viver mais, viver bem, viver com integridade. Todos querem chegar a idades avançadas com suas capacidades de pensar, sentir e agir preservadas e íntegras. Não há ninguém de nós que esteja preparado para apagar suas memórias, suas conquistas afetivas e cognitivas como se fossem um texto provisório traçado a lápis. Queremos nossa história alicerçada e protegida em solo firme e seguro. Queremos nosso passado bem guardado, a salvo de ser tragado pela areia movediça do esquecimento.



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"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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