Quando morre um jovem

Imagem de capa: Maxplay photographer, Shutterstock

Não há nessa vida nada mais difícil do que aprender a lidar com a ideia de sua inequívoca finitude. Nenhum de nós vai sair vivo dessa jornada, certo? No entanto, somos abençoados psicologicamente com o esquecimento diário dessa fatalidade. E, graças a isso, amanhecemos e anoitecemos ao sabor do tempo que passa… gastamos os dias, as horas, os mínimos instantes, em busca de algum prazer ou fórmula mágica que nos envolva na proteção de uma vida sem grandes desastres.

Traçamos metas; planejamos rotas de fuga; nos blindamos; construímos cercas de afeto; erigimos em nossa própria glória, esculturas de fumaça a projetar nossos sonhos e desejos, na esperança de que um dia eles se concretizem ao sabor das bênçãos de um anjo bem-humorado qualquer.

Vivemos tentando caber nas expectativas alheias e nas nossas próprias. Queremos ser incluídos, nos planos do outro, nos anseios de outro, na idealização do outro. Pagamos caro por uma imagem de normalidade e equilíbrio, parcelas altas de empenho e esforço. E quando não damos conta de tudo isso, sofremos… amargamos uma sensação incômoda e pontiaguda de insatisfação e descabimento.

Alguns de nós chegarão ao fim, só depois de ter sorvido cada um dos minutos passados nesse planeta, com a avidez de um náufrago esquecido em alguma ilha isolada por anos e anos, sem contato físico, sem sentir na boca o sabor de qualquer alimento diabolicamente processado, sem os ruídos físicos de outros humanos, sem o olhar modulador de outros da sua espécie, sem oportunidade de perguntar ou responder o que quer que seja, sem ouvir o eco da própria voz. Esses, bebem a vida a tragos longos e saborosos, embriagam-se de tudo: de amor, de ambição, de encontros, desencontros, de noites insones, de planos grandiosos.

Embriagados, chegam ao final da festa com a redentora satisfação daqueles que bebem sempre e tudo até a última gota.

Outros de nós, serão surpreendidos pelo descer das cortinas numa suave e confortável mansidão dos poetas que vivem sem pressa, que se enamoram por suas próprias criações; e, por isso mesmo, vivem numa bruma de enlevo eterno por suas próprias imagens e pelas imagens outras que venham ao encontro de suas mais profundas aspirações. Esses, não bebem qualquer coisa… escolhem os vinhos pela jovialidade ou sobriedade da uva, bebem chás a goles pequenos, tomam café puro, saboreiam com profundidade e reverência cada gota de água. Perdem-se em minúsculos bocados de vida, fingindo que o tempo é uma invenção idiota de algum deus perverso que não tinha nada melhor com que se ocupar.

A grande loucura, no entanto, só é dignamente contemplada e idolatrada quando a ordem aparente das nossas ingênuas aspirações é subvertida. A grande loucura que vem para nos desnortear para além do nosso limite se suportar as perdas, quando são os que viveram mais – sejam os embriagados de vida até a última gota, ou os apaixonados até o último saborear descomprometido -, que precisam carregar flores em memória daqueles que não tiveram a chance de escolher por um ou por outro.

Quando morre um jovem, todos aqueles que ficam sofrem um abalo imensurável em suas formas de contar o tempo. Quando uma vida é precocemente interrompida, a lógica é revirada do avesso até o ponto em que se transforma numa tortuosa falta de sentido e de propósito.

Ninguém está minimamente preparado para se despedir daqueles que ama na configuração de um epílogo definitivo e sem volta. Queremos desesperadamente trapacear a trama… colar mais algumas páginas em branco no final do livro para poder continuar a escrever. Queremos cortar dali o ponto final, esse intruso sem alma que vem nos dizer que é o fim.

O que podemos fazer, no entanto, já que não fomos contemplados com o poder de eternizar aqueles que amamos, é viver de forma a honrar a sua precoce despedida com uma vida que tenha de fato algum significado. Que o nosso luto pelos jovens a quem tivemos de dizer adeus seja uma transformação dentro de nossa alma naquelas nossas mazelas que nos fazem indignos de continuar aqui. Sejamos luz! Porque mais triste do que a despedida é não ser capaz de se tornar alguém melhor, exatamente por causa dela.

Homenagem a Liam Mc Auliffe, que foi luz por onde andou



LIVRO NOVO



"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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