O ciúme não é só vaidade

Outro dia, observando a brincadeira barulhenta do filhote e minha mãe, tive vontade de participar. Pedi para entrar no duelo entre dragões e então ouvi a fatídica frase: “Não, essa brincadeira é só minha e da vovó”. Naquela hora senti-me a própria menininha de trancinhas recusada pela turma do jardim de infância. Desbancada em minha vaidade de mãe-número-um-no-coração-do-meu-filho, senti a ríspida pontada de ciúmes cutucar meu espírito.

Lembrei de Woody, do desenho Toy Story. Ele era o boneco favorito de Andy, o garoto que ganha Buzz Lightyear no aniversário e de repente passa a preferir a companhia do mais novo brinquedo ao antigo. Anos mais tarde, no terceiro filme da série, Woody tem que conviver novamente com esse sentimento de perda, pois Andy cresce e vai para a faculdade.

Ao contrário do que cantava Raul Seixas, o ciúme não é só vaidade, mas tem nascente profunda, ancorada no medo e suas complexas ramificações. Sentir medo é normal. Como não seria normal sentir ciúme? Porém, por mais difícil que seja, temos que dar um jeito de domar esse ferrãozinho que de vez em quando espeta a alma e destrói momentos.

Como rio turbulento que se converte numa queda d’água de grandes proporções, o ciúme nasce raso e inseguro, mas pode ganhar contornos amplos e indefinidos.

A vaidade é irmã do ciúme. Com ele anda de mãos dadas e agrega volumes na mesma proporção. O vaidoso é um inseguro. Precisa reafirmar seu valor diante do espelho e dos outros. Se ressente da falta de aplausos e escassez de elogios (‘likes’, como preferir). Mas também acusa uma inegável carência. Ele não se basta, porque seu amor próprio é minguado. Não tolera a admiração alheia e se atormenta com o brinde ao qual não foi convidado a brindar.

Provocar ciúme também é se banhar num rio de vaidade. Ao instigar ciúme no outro, nos engrandecemos num narcisismo provocativo. Assim como o silêncio é uma forma de domínio, não traduzir-se claramente é manter a vigília sob seu domínio e controle.

Muito além dos ventos súbitos que balançam as relações por desconfiança, existe aquele sentimento que demonstra carinho, necessidade de atenção e afeição, medo de perder ou ser preterido. É o tipo de ciúme que permeia as relações sadias entre pais e filhos, irmãos, parceiros de teto e afeto, amigos. É ciúme que cobra, mas também demonstra que o outro faz falta. É ciúme que exige explicação, mas no fundo necessita de atenção.
É ciúme do tempo que passa afobado e leva a infância e a velhice de jeito precipitado. É ciúme de estar longe querendo estar perto; de ser sentido; de fazer sentido.Ciúme por desconfiança é outra coisa. A relação balançou, faltou verdade, rompeu-se um elo, os nós desataram, a louça rachou. Nunca mais será a mesma, por melhor que seja a emenda. Desconfiar não é ter ciúme, é viver em corda bamba. É tentar remediar o que não tem conserto.
Porém, aquele que desconfia sem motivo desconhece que não confia nem em si mesmo. Por motivos claros ou não, perdeu a ligação com a confiança que deveria morar dentro de si. O desconfiado por natureza é vulnerável. Vulnerável aos medos, às ciladas que ele mesmo construiu, aos afetos.
Desconfiança é prima distante do ciúme. Faz dele um sentimento difícil de aturar e conviver. Desconstrói o cuidado para ser só cobrança. Desnuda a falta para ser só procura de provas.

Ciúme de verdade não é só vaidade. É sintoma de amor, de saudade, de querer fazer parte. É carinho com beicinho, choro abafado no travesseiro, pedido atrasado de perdão. Como a letra de Rita Lee, um “Auê”, sem querer magoar você…

… Dias depois, brincando de luta entre dragões em cima da cama com meu filho, assumi minha pontadinha de ciúme. Porém, já prevendo a devolutiva, expliquei: “Ciúme – é – problema – de – quem – tem”.
E continuei com firmeza: “por mais que esse sentimentozinho venha agulhar de vez em quando,há alegria maior em ver meus grandes amores _ você e minha mãe (sua avó)_ em tão perfeita sintonia?”

Sentindo-me como Woody, finalmente recordo que a vida é feita de ciclos; e por mais que o ciúme permeie nossas despedidas e refaça nosso contrato com o tempo, só assim crescemos e deixamos o outro crescer.



LIVRO NOVO



Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

2 COMENTÁRIOS

  1. uau… recebi um tapa na cara depois de ler esse texto… não sou do tipo ciumento, não… mas o que mexeu comigo foi a questão da vaidade… isso eu percebi que tenho que melhorar, postei uma foto no facebook e uma moça que fico veio comentar que tinha umas admiradoras lá curtindo e comentando… e embebido com o néctar da vaidade (fala sério, até essa expressão que usei agora é cheia de vaidade… :/) e eu ia perguntar a ela : " o que foi, ficou com ciúmes? 😉 "
    parei na mesma hora porque estava lendo seu texto…
    concordo com você, ciumes e insegurança… sempre abominei isso… mas relacionar tudo isso com vaidade… até me fez pensar … será que essa foto que postei sem camisa não foi pra atrair a atenção dessa ou daquela… ou foi por mim… excelente texto Fabíola… vou ler os outros…
    edmarciano.blogspot.com.br

  2. Estava vasculhando no meu computador e por algum motivo guardei tua materia salva no pc, da qual ja foi de profunda sabedoria num momento de grande precisão! Vale ressaltar de que a precisão ainda é enorme, mas me fazer reconhecer nas tuas palavras me traz grande satisfação!!!

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